As próximas comemorações do 25 de Abril, como todas as outras desde há muito tempo, enquadram-se perfeitamente dentro da categoria que os Estóicos apelidavam de “preferíveis indiferentes”, isto é, coisas que não são nem boas nem más e que podem ser escolhidas sem dano para o nosso carácter moral: ser rico ou ser pobre, ter prestígio ou não o ter, e por aí adiante. Por mim, não sei contar há quanto tempo não ponho o pé na rua para celebrar a coisa, mas sei de certeza certa que não o faço desde poucos anos depois de 1974. O estilo festivo-fascista (de esquerda) destas comemorações desagrada-me até à medula dos ossos e, não as achando de modo algum uma encarnação do Mal, julgo-as como algo que, como disse, entra na categoria do indiferente.

Dito isto, certas reacções à festividade em causa – este ano, a interdição pelo “capitão de Abril” Vasco Lourenço da presença da Iniciativa Liberal no cortejo -, despertam-me uma certa reactividade que perturba a natural tendência para a indiferença. Porquê? Banalmente, porque correspondem da forma mais explícita que se pode conceber à afirmação do regime que entre nós vigora como um regime de esquerda. Isto é: um regime fundado na exclusão de uma parte significativa da população que, a priori, se encontra menorizada e diminuída na palavra, ao ponto de ter de recorrer ao disfarce ou às diversas fantasias de acomodação à menorização de que a comunicação social (o Expresso e a SIC em primeiro lugar) é a expressão mais óbvia.

Mas tudo, de facto, tem o seu bom lado. O óbvio ajuda a reflectir. Escancarado, é difícil fugir-lhe. E uma ou duas coisas vêm imediatamente ao espírito como consequência dessa reflexão básica.

Quando eu era novo, a reactividade era uma coisa muito mal vista. Os espíritos superiores, inspirados numa leitura pelo menos parcial e simplificadora das filosofias de Espinosa e Nietzsche, viam nela a origem de todos os males e dos piores valores, o defeito humano por excelência dos jurados inimigos de tudo o que é bom e nobre. Não sei o que pensam esses espíritos hoje em dia, mas uma coisa sei, e é algo que já sabia nesses juvenis tempos, que me despertam, de resto, muita saudade: pelo menos em matéria política, a reactividade é um bem indisputável, além de uma condição indispensável para pensar. E isso porque, como dizia Raymond Aron, numa frase que já citei mais do que uma vez nesta coluna, em política não escolhemos os amigos – escolhemos os inimigos. Dito de outra maneira: o critério principal da escolha política é o da oposição e não o da pura e simples afirmação. É claro que isso dá espaço para pensarmos o melhor, a sociedade que desejamos e o modo de vida que mais se aproxima da excelência, como se dizia noutros tempos. Para mim, a igualdade compatível com a liberdade (não há antinomia pura e simples entre uma e outra) e o melhor viver dos mais desprotegidos. Mas, em termos práticos, é a recusa e a negação do que nos surge como ameaçador ou simplesmente nocivo que ocupa o primeiro lugar. Caso contrário, a possibilidade da desatenção à realidade fica com as portas todas abertas, e, com as portas todas abertas, logo entram o desprezo pelos indivíduos que não partilham o nosso sonho e, quase fatalmente, a opressão da sociedade pelos sonhadores autorizados, nossos tutores, amos e senhores.

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Cada um terá a sua, pequena ou grande, lista das crenças políticas – e dos comportamentos que as acompanham – que lhes suscitam particular reactividade. A lista variará na mesma pessoa com os tempos, consoante o sentimento de ameaça que presentemente as crenças e os comportamentos nela suscitem. Não faz pura e simplesmente sentido exorbitar de reactividade face a perigos que estamos convencidos serem largamente imaginários. (Já agora: o medo exibe uma típica reactividade, que pode ser inteiramente racional, por mais triste que seja essa paixão.) A distinção entre perigos reais e imaginários fica a cargo do nosso juízo político. Trata-se de um juízo obviamente falível e a possibilidade do erro acompanha-o sempre. Mas o mundo político é, por definição, feito de incertezas e de riscos, e tal possibilidade de erro não é nunca eliminável. O sociólogo neo-positivista (e marxista) Otto Neurath decretou em 1929, num texto célebre – o chamado Manifesto do Círculo de Viena, destinado a promover uma “concepção científica do mundo” –, que em breve, conceitos como o de “espírito do povo” desapareceriam completamente da nossa linguagem. Exactamente dez anos depois, as segundas grandes tempestades de aço do século XX começariam a cair sobre a Europa em nome desse mesmo “espírito do povo”. E ninguém está livre de cometer os mesmos erros que um espírito brilhante como Otto Neurath cometeu.

Tudo isto se liga a algo que não é nunca demais sublinhar. A realidade social não se deixa nunca determinar com o mesmo grau de rigor, ou exactidão, que a realidade natural. Há um sem número de teorias da sociedade absolutamente fascinantes que a filosofia política e, mais recentemente, a sociologia, puseram à nossa disposição, de Platão a Hayek. Mas nenhuma, por mais iluminante que seja, nos permite determinar univocamente a realidade como um todo. Nas melhores, há aspectos da realidade social que, até então ignorados, são vistos pela primeira vez ou sob uma luz nova. Mas isso não permite nunca uma determinação exclusiva e definitiva do que faz a sociedade ser uma sociedade (e do que faz cada sociedade ser uma sociedade única, uma criação histórica irrepetível). A coisa repercute-se, naturalmente, nos nossos juízos políticos. Um sistema de juízos políticos inteira e completamente consistente é impossível – ou então é um monstro lógico. A mesma coisa vale, de resto, para os sistemas éticos. Não há sistema ético que, levado às suas últimas consequências, não comporte resultados absolutamente indesejáveis, quando não monstruosos. Para não abusar da paciência de ninguém, não dou exemplos.

Aconselha-se, portanto, em matérias éticas e políticas, espaço para alguma inconsistência. O que nos convida a ler ou a reler um pequeno ensaio que o filósofo polaco Leszek Kolakowski, emigrado em Inglaterra por ser perseguido pelas autoridades comunistas do seu país, intitulou “Como ser socialista – conservador – liberal”. Não interessa aqui o modo como Kolakowski caracteriza cada uma dessas atitudes políticas nem a forma como concebe a sua eventual harmonização. Interessa, sim, a insistência na necessidade de uma certa inconsistência (tema de um seu outro ensaio) em matéria política, uma inconsistência ditada pela própria natureza da nossa vida em sociedade, cuja indeterminação deveria, entre outras coisas, imediatamente mostrar a aberração (utilizo propositadamente uma expressão forte) da oposição público/privado tal como é usualmente concebida. Nenhuma posição política que não albergue explicitamente algum espaço para a inconsistência merece ser seriamente considerada. E isso porque necessariamente falha as condições para poder pensar a sociedade tal como ela realmente existe.

Como muita gente, acontece-me pensar como seria o partido ideal em que me apeteceria votar. Seria, sem dúvida, um partido reactivo, no sentido que primeiro apontei, e seria igualmente um partido que não fizesse da consistência doutrinária um ponto de honra inflexível. Seria certamente um partido de convicções, no sentido em que as convicções representam a possibilidade de um meio-termo entre a reactividade e a afirmação, o que nos protege da recusa absoluta e do sonho arbitrário e nos permite aquela dose mínima de optimismo sem a qual não é possível viver em sociedade sentindo-nos parte integrante dela. Poucas convicções bastam. Quando as convicções se multiplicam é muito mau sinal. Nenhuma cabeça normal tem espaço legítimo para muitas. A partir da terceira, o mais provável é estar-se a mentir.

Incidentalmente, seria um partido que não se reconheceria no estilo das próximas celebrações do 25 de Abril e que não se inibiria em apontar o medo que elas suscitam. O medo que o facciosismo bem instalado provoca junto daqueles que não se encontram no poder ou não são dotados da dose conveniente de cinismo e cobardia (o mais das vezes as coisas confundem-se) para com ele manterem a melhor das relações.