A demência, em particular a doença de Alzheimer, é um dos maiores desafios médicos, sociais e económicos que o mundo ocidental enfrenta e enfrentará nas próximas décadas. Cerca de 50 milhões de pessoas no mundo sofrem de algum tipo de demência; em Portugal estima-se que aproximadamente 100.000 pessoas tenham doença de Alzheimer e 160.000 tenham demência (Alzheimer e outras causas). A tendência crescente é alarmante: em 2050 os números podem aumentar 2 a 3 vezes a nível mundial.
De momento, não dispomos de um tratamento que tenha a capacidade de impedir o avanço da neurodegeneração nem o agravamento progressivo da doença: os fármacos existentes têm apenas a capacidade de melhorar de forma modesta os sintomas. Resta acrescentar, com algum desalento, que a aprovação mais recente de um medicamento para o tratamento da doença de Alzheimer foi há 15 anos atrás.
Infelizmente, os ensaios clínicos têm sido consistentemente negativos — ou seja, nenhum fármaco se mostrou eficaz ou suficientemente seguro para poder ser comercializado e prescrito. Mas a maré poderá vir a mudar – com extraordinárias consequências potenciais.
Ignorada durante a maior parte do século XX, em parte porque a longevidade da população era bastante menor e, portanto, havia muito menos pessoas afectadas, a doença de Alzheimer tem sido objecto de intensa investigação nas últimas décadas. As empresas farmacêuticas têm investido centenas de milhões de euros na investigação e desenvolvimento de numerosas moléculas cujo objectivo é impedir a progressão da doença. Se é verdade que temos assistido a vários exemplos bem sucedidos em relação a outras doenças neurológicas, como na atrofia muscular espinhal, o mesmo não tem acontecido com o Alzheimer. Infelizmente, os ensaios clínicos têm sido consistentemente negativos — ou seja, nenhum fármaco se mostrou eficaz ou suficientemente seguro para poder ser comercializado e prescrito. Os motivos para isto não estão perfeitamente esclarecidos, mas radicam provavelmente no conhecimento incompleto que a ciência tem sobre aos mecanismos de aparecimento e propagação cerebral da doença de Alzheimer, e eventualmente devido a insuficiências no desenho dos ensaios clínicos ou na interpretação dos seus resultados.
Mas a maré poderá vir a mudar – com extraordinárias consequências potenciais.
A versão resumida da história começa em março de 2019, quando o desenvolvimento clínico de um fármaco inovador para o tratamento da doença de Alzheimer foi interrompido, para desalento da comunidade científica e dos doentes. O aducanumab pertence a uma classe de fármacos de síntese complexa (anticorpos monoclonais) que promovem a eliminação de uma proteína anormal que se pensa ter um papel fundamental na doença, a beta-amilóide, cuja deposição no cérebro causa a morte progressiva dos neurónios. Tal como é habitual no decurso dos ensaios clínicos, de forma a proteger os doentes e a racionalizar recursos, foi feita uma análise interina dos resultados obtidos até então. Esta análise sugeriu que seria muito difícil atingir os objectivos pré-estabelecidos. A investigação clínica do aducanumab foi interrompida mas, ao longo dos meses seguintes, os dados das avaliações entretanto feitas aos doentes envolvidos foram sendo colectados. Uma análise posterior sugeriu que o fármaco poderia ser eficaz a atrasar a progressão da doença. Estes dados foram entretanto apresentados e discutidos publicamente, já em Dezembro de 2019, na conferência Clinical Trials on Alzheimer’s Disease, sob o olhar atento da comunidade científica.
Assim, a empresa responsável pelo desenvolvimento do aducanumab comunicou a sua intenção de pedir, já no início de 2020, a aprovação do fármaco à Food and Drug Administration (FDA), de forma a poder comercializá-lo nos Estados Unidos. As conclusões e intenções da empresa foram amplamente reverberadas na comunicação social, por vários motivos: primeiro, pela perspetiva de poder existir finalmente um tratamento inovador para uma doença tão frequente, tão temida, e para a qual as opções terapêuticas actuais são muito insatisfatórias; depois, pelo facto de uma análise interina ter levado à suspensão da investigação clínica, que foi seguida de uma inversão dramática de posição alguns meses depois. Esta “ressurreição” foi recebida com surpresa e optimismo (cauteloso) pela comunidade médica e científica. Os comunicados da empresa justificam a mudança com o benefício clínico observado no grupo de doentes expostos a doses mais elevadas do medicamento. Convém lembrar que os dados disponíveis continuam em análise, não sendo ainda possível concluir em definitivo sobre a real eficácia do medicamento.
Se a FDA aprovará ou não o aducanumab é, de momento, matéria de especulação. Contudo, num sistema de saúde pago pelo utilizador como é o norte-americano, e dada a grande expectativa dos últimos anos, aliada à pressão das associações de doentes e até da opinião pública em geral, parece razoável considerar que a aprovação do medicamento possa mesmo acontecer. O passo seguinte será, naturalmente, a solicitação da aprovação pela Agência Europeia do Medicamento (European Medicines Agency, EMA), para introdução do fármaco na União Europeia, incluindo Portugal.
Convém lembrar que a Europa tem sistemas de saúde muito diferentes do norte-americano, nomeadamente no que diz respeito ao financiamento de exames e tratamentos, predominantemente através do Estado (ou seja, impostos dos contribuintes) na UE. Pode inclusivamente chegar-se à conclusão que os resultados do aducanumab não são bons o suficiente para permitir a sua aprovação pelas agências reguladoras. Mas, o que acontecerá quando finalmente isso acontecer, com este ou outro(s) fármaco(s) no futuro? Naturalmente, as autoridades nacionais serão chamadas a pronunciar-se — qual será a decisão e as suas implicações? Uma das questões centrais é que os ensaios foram realizados em populações de doentes em fases iniciais da doença de Alzheimer. E aqui reside um dos principais problemas do ponto de vista da organização e do financiamento dos cuidados de saúde.
É difícil dizer quando “começa” a doença de Alzheimer. Biologicamente, a deposição de proteínas anómalas começa anos antes dos sintomas clínicos. Os doentes com queixas cognitivas (por exemplo esquecimentos, dificuldades de nomeação, dificuldade em executar tarefas) e resultados abaixo do esperado em provas cognitivas, mas que mantêm globalmente a capacidade de realizar as suas actividades quotidianas, podem cumprir critérios de diagnóstico de um estado pré-demência denominado de “défice cognitivo ligeiro”. A distinção entre este e a fase de demência nem sempre é clara e incide essencialmente sobre aspetos relacionados com a autonomia do doente, por vezes difíceis de objectivar ou quantificar. Hoje considera-se que os doentes com défice cognitivo ligeiro e que tenham evidência biológica de patologia associada a Alzheimer em exames complementares específicos (biomarcadores) têm a doença e estão em risco de progredir para demência. Os exames complementares que permitem confirmar ou excluir o diagnóstico de doença de Alzheimer são dispendiosos (como a ressonância magnética cerebral) e/ou pouco disponíveis (tomografia por emissão de positrões ou PET, positron emission tomography) e, em alguns casos, invasivos e apenas realizados por Neurologistas (doseamento de proteínas no líquido céfalo-raquídeo, que banha o cérebro e a medula espinhal, através de uma técnica de colheita chamada punção lombar).
Com o surgimento de um tratamento inovador, capaz de diminuir a progressão para demência na população com défice cognitivo ligeiro, torna-se extremamente importante identificar as pessoas que têm indicação potencial para receber estes tratamentos inovadores.
Estes exames têm limitações e riscos, pelo que não podem ser oferecidos de forma indiscriminada à população geral com queixas cognitivas, nem se vislumbra actualmente benefício clínico significativo na sua utilização em doentes com demência instalada. Há também exames falsos positivos e falsos negativos — ou seja, existe um risco de diagnosticar doença de Alzheimer em quem não a tem, ou de assegurar erradamente a alguém que não sofre desta doença. A presença de alterações nestes exames não significa necessariamente a progressão para demência.
Com o surgimento de um tratamento inovador, capaz de diminuir a progressão para demência na população com défice cognitivo ligeiro (ou mesmo em fases ainda mais precoces, como as “dificuldades cognitivas subtis objetivas”), torna-se extremamente importante identificar as pessoas que têm indicação potencial para receber estes tratamentos inovadores.
As queixas cognitivas são hoje em dia um dos principais motivos de consulta de Neurologia. As síndromes depressivas e a ansiedade, a comum dificuldade de concentração, a má qualidade de sono, e até o simples e ubíquo cansaço associado às circunstâncias pessoais e profissionais da vida moderna fazem com que inúmeras pessoas procurem consulta especializada. O diagnóstico final nem sempre é linear, mesmo para especialistas. Hoje, porém, a diligência diagnóstica é relativa – importa sobretudo excluir causas tratáveis, como as alterações da tiróide ou os défices de vitaminas (essas sim, passíveis de exclusão com exames de fácil acesso) e depois, se o conjunto dos dados clínicos o corroborar, iniciar medicação sintomática para a demência, em particular para a doença de Alzheimer.
Num mundo em que exista um medicamento que diminui a progressão da doença de Alzheimer, atrasando ou até eventualmente impedindo o aparecimento de demência, este paradigma alterar-se-á drasticamente. A pressão sobre os serviços de Neurologia (actualmente já assoberbados) e até sobre os cuidados de saúde primários, aumentará de forma muito significativa num curto espaço de tempo. O diagnóstico das fases precoces de doença de Alzheimer requer uma logística pesada de recursos técnicos e humanos – Neurologistas e Neuropsicólogos (actualmente também muito poucos) com treino específico em demência, Neurorradiologistas, médicos especialistas em Medicina Nuclear, ressonância magnética, PET, etc – que poucos centros têm disponíveis e/ou em articulação plena. A acessibilidade a estes exames é muito limitada porque existem poucas máquinas de PET em Portugal, que estão actualmente saturadas com exames da área da Oncologia. Por outro lado, o composto específico usado na PET para diagnóstico da doença de Alzheimer é difícil de sintetizar e de obter em Portugal, e o preço do exame é muito elevado. Em relação à medição de proteínas no líquido céfalo-raquídeo existe uma forte limitação em relação ao número limitado de Neurologistas, actualmente muito pressionados com a actividade clínica rotineira (consultas, urgência, internamento hospitalar, etc), a que se adiciona uma escassez de laboratórios devidamente preparados e certificados para a medição fiável e rápida destas proteínas. Por fim, o elevado custo de uma terapêutica a administrar cronicamente será também um fator a ter em conta. É uma situação complexa, que exige preparação técnica aprofundada e uma logística adequada a vários níveis.
A grande maioria dos seis países analisados (Alemanha, Espanha, França, Itália, Suécia, Reino Unido) não seria capaz de gerir eficazmente a procura aumentada de consulta até 2030, estimando-se que cerca de um milhão de doentes poderá desenvolver doença de Alzheimer
Este problema não existe só em Portugal. A RAND Corporation, um think tank que analisa diversas matérias, entre as quais políticas de saúde, estudou já o impacto presumível, em diferentes sistemas de saúde, do aparecimento de um tratamento inovador para formas precoces de doença de Alzheimer em 2020. A grande maioria dos seis países analisados (Alemanha, Espanha, França, Itália, Suécia, Reino Unido) não seria capaz de gerir eficazmente a procura aumentada de consulta até 2030, estimando-se que cerca de um milhão de doentes poderá desenvolver doença de Alzheimer enquanto espera pela avaliação clínica e tratamento no período entre 2020 e 2050.
A inovação terapêutica, fruto de programas de investigação pré-clínica racionais e ensaios clínicos robustos, é sempre motivo de grande esperança para doentes, cuidadores e profissionais de saúde. No caso particular das demências existe uma enorme carência de boas notícias. O eventual surgimento de uma terapêutica inovadora nesta área forçará certamente mudanças muito importantes nos sistemas de saúde.
Seria prudente que os decisores políticos encetassem desde já esforços no sentido de mitigar este previsível problema. O sistema precisará de ser repensado, re-estruturado e reforçado de forma a que seja possível identificar e tratar quem sofre de uma doença altamente prevalente, de diagnóstico difícil e ancorado em exames sofisticados, dispendiosos e de difícil acesso, e que exige recursos humanos altamente diferenciados e em número suficiente.
Actualmente, face ao número potencial de doentes que procurarão o sistema de saúde português, particularmente o Serviço Nacional de Saúde, será um enorme desafio dar respostas satisfatórias, em tempo útil, aos doentes certos. O futuro será também um tempo de escolhas políticas e técnicas difíceis, que exigirão racionalidade e sólidas bases científicas e bioéticas – basta pensar na enorme pressão financeira que estes fármacos causarão, provavelmente muito acima dos recentes tratamentos inovadores da hepatite C. Seria bom agir desde já e não apenas reagir quando nos depararmos com o problema. Nessa altura, os custos – clínicos, económicos e sociais – serão certamente bem maiores para quem não se preparou devidamente.
Declaração: o artigo reflete a opinião pessoal dos autores e não a posição oficial das entidades a que estão afiliados.