“The Small Things Like These” é um pequeno livro de Claire Keegan sobre os asilos da Igreja Católica na Irlanda que albergavam raparigas que tinham ‘perdido a inocência’. Ou melhor, versa sobre a reacção de um homem perante um facto que lhe é revelado por acaso. O livro, que é pequeno, diz muito com pouquíssimas palavras e foi, entretanto, publicado em Portugal pela Relógio D´Água.

No Natal de 1985, poucas semanas após o acordo entre a Irlanda e o Reino Unido, Bill Furlong, um comerciante que ganha a vida no trabalho duro da venda do carvão, faz uma descoberta que o deixa transtornado. Ao proceder a uma entrega no convento local depara-se com uma rapariga que chora fechada numa sala às escuras. Esta deixa escapar que não sabe do filho. Furlong, casado e pai de 5 filhas, fica com a certeza de que algo não bate certo quando a Madre Superiora, com uma subtileza muito própria, o interpela para que fique calado. Na aldeia suspeita-se do que se passa entre as quatro paredes do convento, mas a regra seguida é a do silêncio. O assunto não diz respeito aos respeitáveis e obedientes cidadãos da República das Irlanda. Mas Furlong, ele próprio filho de pai incógnito, deve a sua vida à generosidade de uma mulher abastada que, não tendo filhos, o recolheu juntamente com a mãe. E é isso que o faz agir. Um dia, Bill Furlong sai de casa, entra às escondidas no convento, pega na rapariga e leva-a consigo. Fá-lo sabendo que a mulher, apesar de não concordar com a sua decisão, o apoiará porque conhece a sua história, compreende a história da sua vida e também porque tem um pingo de humanidade.

Ao certo não se sabe quantas raparigas viveram encarceradas nestes asilos nem quantos bebés morreram em segredo. Sabe-se, isso sim, que foram muitos. Consta que entre 1925 e 1961 terão sido perto de 800. Nos anos 90 foram descobertas valas comuns que confirmam os horrores cometidos. Além dos crimes atrozes, que foram verdadeiros, tocou-me a personagem fictícia de Bill Furlong, um homem simples, sem grande instrução, católico praticante que não esqueceu uma das lições de Cristo: que a relação que temos com Deus é nossa; é individual. Que cada um é responsável perante Deus. Foi esta percepção que o fez agir contra as convenções, contra a opinião original da mulher, contra o conselho de uma vizinha prática e pragmática e contra o aviso subtil da freira. Ao agir de acordo com a sua consciência, Furlong, que em tempo foi salvo, em tempo salvou.

O relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica Portuguesa revela um número elevado de vítimas, uma lista de crimes mostruosos cometidos ao longo de décadas. É assustador que a lista divulgada seja apenas a ponta do icebergue do que aconteceu. São muitos os que não quiseram falar e muitos mais os que ficaram terrivelmente esquecidos para sempre. O que lhes fizeram não tem reparação, os danos não se corrigem e é indispensável que a Igreja não se fique por aqui. Não se limite a um pedido de desculpas, mas faça um acto de contrição, cumpra uma pena, corrija o que está errado, não tolere comportamentos ilícitos, ataques à moral e bons costumes, seja transparente, colabore com as autoridades. Aproveite para pensar e debater a melhor forma dos padres exercerem as suas funções na sociedade actual. E mais importante que isso, que pondere o modo como selecciona futuros padres, os critérios que segue, de forma a que não se reduzam aos exemplos que constam no Relatório. Mais ainda é indispensável que siga e aplique as recomendações da Comissão que constam desse mesmo Relatório. A Igreja actualizou-se noutros tempos e é necessário que não se reduza ao que foi durante alguns séculos. Os católicos precisam dessa reforma e são muitos os que, dentro da Igreja, sentem nojo e desprezo pelos abusos cometidos e não podem ser confundidos com estes. Fui aluno de um colégio católico e sei que há bons profissionais, completamente alheios ao que nos foi dado a conhecer na Gulbenkian, e que merecem uma Igreja à altura da sua fé.

Vai ser um trabalho hercúleo, imenso. A Igreja portuguesa, que pediu e aceitou o trabalho de investigação de uma comissão independente, submeteu-se à divulgação pública dos seus pecados, das suas falhas e dos crimes de muitos dos seus. Vimos bispos sentados a escutar o preço dos seus silêncios. Foi um bom primeiro sinal. Esperemos que se emende e não transija mais. Bill Furlong é uma personagem fictícia que agiu da forma correcta, com a coragem e o sofrimento e as consequências que isso exige. Se a Igreja portuguesa levar a sério o que aconteceu na Gulbenkian a 13 de Fevereiro não vamos precisar de um livro de ficção para lidar com o passado. No fundo, o que se espera é que a Igreja portuguesa faça o que o cristianismo nos aconselha quando erramos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR