O adjectivo ‘cidadão’ é de atestação recente. O substantivo ‘cidadão’ tinha demorado tempo a tornar-se um nome comum; só adquiriu família muito tarde. Dessa família faz parte a palavra ‘cidadania’, que é usada nas autarquias e nas universidades em locuções como ‘os grandes valores da –‘, ‘os principais deveres da  –‘  e ‘o maior exemplo de –.‘

Como um sistema de águas quentes e frias ou uma toga, ‘cidadão’ e ‘cidadania’ prometem a harmonia de um mundo clássico. Os pormenores desse mundo são difusos. Não será a Grécia Antiga:  um cartão de cidadão não ajuda a distinguir os seus possuidores de quem tem um cartão de bárbaro, composto numa língua incompreensível; e muito menos de quem tem um cartão de escravo, ou uma licença de centauro. Também não é concebível que uma loja do cidadão seja uma alusão à Roma republicana: quem lá vai sabe que não pode presumir obter contratos de cavaleiro, atestados de megera ou uma posição de cônsul.

A palavra ‘cidadão’ refere-se à Revolução Francesa, limite e expoente da imaginação política e administrativa. Trata-se também de uma revolução francesa genérica, que inclui Terror e Termidor, e outros avanços civilizacionais. A palavra sugere por implicação duas grandes ideias: a de que os portugueses vivem em cidades; e também a de que são extraordinariamente parecidos uns com os outros. O arranjo verbal parece apropriado. Mesmo no interior mais remoto e deserto de Portugal, e sobretudo nesses casos, nunca estamos a menos de quatrocentos metros de uma cidade; e mesmo numa cidade nunca estamos a menos de dez palmos de duas pessoas quase iguais. Tal como não há taiga sem tigre, ou tigre sem outros tigres, assim não parece imaginável que haja cidades sem cidadãos; ou que haja cidadãos que não sejam indiscerníveis de outros cidadãos.

Este mundo habitado por cidadãos, cuja principal expressão arquitectónica é o pavilhão multiusos, foi no entanto alterado pelo aparecimento do adjectivo ‘cidadão’. Ao princípio ninguém reparou. Os substantivos que o acompanhavam eram todos masculinos (‘movimento’, ‘empenhamento’, ‘enriquecimento’, ‘tratamento’). Como o substantivo ‘cidadão’ também o era, imaginou-se durante algum tempo que se tratasse de um nome composto; ‘movimento cidadão’ era afinal pouco diferente de ‘couve-flor’, ‘pata choca’, ou ‘Luís Filipe.’

As dificuldades acentuaram-se porém quando o adjectivo ‘cidadão’ começou a ocorrer com substantivos femininos. Passou a ouvir-se “participação cidadã”, “convenção cidadã”, ou mesmo “iniciativa cidadã.” O problema não foi com essas coisas, visto que a elas, como a um centauro, nunca ninguém viu. Tratou-se antes de um problema de morfologia. Os cientistas debatem hoje por isso a forma correcta do feminino do adjectivo ‘cidadão.’ Deverá seguir o modelo de ‘temporã’ ou, pelo contrário, o caminho de ‘lambona’? Vários pressentem neste debate uma questão de regime. Os mais pessimistas adivinham o regresso do Terror no conceito de iniciativa cidadona.

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