1 O Governo dá indícios de que terá alguma réstia de humildade na forma incompetente como tem gerido a crise pandémica. Em poucos dias, o ministro dos Negócios Estrangeiros admitiu à CNN de que o Executivo tem a sua quota parte de responsabilidades na forma como a pandemia ficou descontrolada após o Natal (contrariando mensagem contrária transmitida pelo ministro Pedro Siza Vieira ao New York Times), a ministra Marta Temido prometeu estudar uma forma de corrigir a estratégia de testagem seguida até agora (após a recomendação do professor Manuel Carmo Gomes) e até a diretora-geral de Saúde confessou que, se fosse hoje, não teria feito afirmações equívocas que se colaram à sua pele, como a sensação de insegurança provocada pelas máscaras ou a garantia de que o vírus SARS-CoV-2 não chegaria a Portugal.

Já o primeiro-ministro deve ter mixed feelings — certamente explicáveis pelo seu gosto por habilidades políticas. Se, por um lado, está mais austero do que em dezembro e praticamente garante que o desconfinamento só ocorrerá após a Páscoa — um indício de que terá aprendido algo com o trágico erro do Natal. Por outro lado, António Costa não consegue abandonar o seu estilo habitual quando jura que o resultado do défice em 2020 ficou abaixo do esperado e que tal explica-se com o aumento de receita dos impostos e não pela poupança de 6,8 mil milhões de euros face ao Orçamento Suplementar — isto quando a receita pública, segundo Direção-Geral de Orçamento, ficou cerca de 3,5 mil milhões abaixo do esperado no Suplementar.

É sempre positivo que as autoridades admitam os seus erros — precisamente porque é possível corrigi-los e procurar o trilho mais acertado e eficaz. Mas será que o Governo recuou e mudou mesmo de estratégia?

2 Não contesto que pode estar mais cauteloso mas há um ADN guterrista em António Costa que teima em condicionar tudo. Veja-se, por exemplo, o que aconteceu na última reunião do Infarmed marcada pelas críticas contundentes do professor Manuel Carmo Gomes à estratégia reativa do Governo para combater a Covid-19 e uma aposta na testagem massiva proposta pelo mesmo especialista. O que fez o primeiro-ministro a seguir a esse diagnóstico? Pediu um consenso aos especialistas sobre essa nova estratégia, como o Observador revelou.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Na prática, o primeiro-ministro resume a governação em procurar consensos entre as diferentes posições técnicas — e não a melhor opção, mesmo que não seja maioritária. Se o consenso for obtido, o caminho do Executivo estará facilitadíssimo, digo eu. Se correr bem, foi o Governo quem mandou fazer; se correr mal, são os cientistas os responsáveis. Isto demonstra como António Costa receia críticas ao seu Governo.

Costa terá pedido ainda aos parceiros sociais (associações patronais e sindicais) que escolhessem o que preferiam para o futuro: “confinamentos intermitentes (curtos e intensos) ou medidas de contenção (que não cheguem a um lockdown)”, segundo o Expresso. Um verdadeiro confinamento à la carte e à vontade do freguês — o pior do guterrismo.

Infelizmente para António Costa, o poder de decisão reside no primeiro-ministro — e não é delegável como acontecia naquele programa da RTP “Agora Escolha!”, uma relíquia do tempo em que a interatividade estava a dar os primeiros passos e no qual o espetador escolhia qual o fim do programa através de votação feita em direto.

3 Como gostava de procurar consensos, António Guterres também ficou conhecido pela sua falta de coragem política como primeiro-ministro — outra característica que Costa também terá herdado. Entre muitos outros casos, veja-se por exemplo a questão dos rastreadores necessários.

Trata-se uma situação que se arrasta praticamente desde o início da pandemia. Desde fevereiro/março que é sabido que a melhor forma de isolar os novos infetados, é através do cruzamentos dos testes com os inquéritos epidemiológicos. Pois desde essa altura que Portugal tem um enorme défice de funcionários para realizar tais inquéritos: hoje são mil quando o número ideal varia entre os três e os quatro mil técnicos.

E porque razão o nosso país tem entre três a quatro vezes técnicos a menos? Porque haverá razões “corporativistas” da parte dos médicos, garantiu António Costa na reunião do Infarmed, que não querem abrir mão da realização de tais inquéritos. Se tal é assim, se os médicos são os maiores responsáveis por este atraso, é altura de o Executivo dar um murro na mesa e determinar uma flexibilização dos critérios e determinar a ajuda de outros setores.

O país não pode ficar à espera de um consenso quando a decisão política cabe ao Governo e a mesma só poder ter dois focos em nome do interesse comum: salvar vidas e controlar a pandemia.

4 Veja-se agora o caso da forma como a Direção-Geral de Saúde (DGS) recomenda a administração da vacina da AstraZeneca. Se um número muito significativo de países europeus seguiram a prudência e não autorizaram a vacina para os doentes com mais 65 anos — ou como mais de 55 anos, no caso de Espanha. Já Portugal decidiu inventar um pouco. Diz a DGS o seguinte:

  • a vacina deve ser administrada preferencialmente a adultos com menos de 65 anos;
  • Se não existir mais nenhuma vacina, então o idoso em causa (com mais de 65 anos) pode e deve ser vacinado com a vacina da AstraZeneca.

O que devido aos atrasos muito significativos na entrega das vacinas por parte da Comissão Europeia, pode significar que um conjunto alargado de idosos pode vir a receber uma vacina para a qual ainda não foi garantida uma efetividade acima dessa faixa etária. Será que não seria mais prudente aplicar esta vacina da AstraZeneca apenas a pessoas mais novas, dando apenas a vacina da Pfizer e da Moderna aos mais velhos?

A mesma ausência de prudência verifica-se nos critérios prioritários para aplicação das três vacinas que já temos em Portugal, que são os seguintes:

  • Mais de 50 anos com pelo menos uma destas comorbilidades: insuficiência cardíaca; doença coronária; insuficiência renal ou doença pulmonar obstrutiva crónica, doença respiratória crónica sob suporte ventilatório e/ou oxigenoterapia de longa duração.

Pergunta: o que acontece se aparecerem doentes com mais de 50 anos com diferentes comorbilidades? Quem é vacinado em primeiro lugar? A diretora-geral Graça Freitas não explica.

Será que corremos o risco de assistir a novos casos de desvios, por má interpretação das normas? Parece-me que sim, claramente.

5 Melhor do que tudo:  o Governo vai criar uma nova task force ao fim de um ano de pandemia. O objeto desse novo grupo técnico? Não resisto a citar diretamente o Expresso: “uma task force de ciência comportamental aplicada em contexto de pandemia”. O leitor percebeu o que quer isto dizer? Não? Eu também não percebi na altura. Vamos continuar a citar o Expresso que, por sua vez, atribui a informação a uma “fonte do Executivo”. “Um grupo técnico que possa aconselhar o Governo a fim de garantir uma mensagem eficaz que promova a adesão às medidas sanitárias e a adoção dos comportamentos mais adequados a cada fase de pandemia.”

Portanto, ao fim de quase um ano após a chegada do coronavírus a Portugal, o Governo de António Costa vai ter um grupo técnico para o aconselhar a comunicar melhor. Não sei se o grupo técnico vai ter um focus group associado mas certamente que essa ferramenta será essencial para ser coerente com a personalidade política do primeiro-ministro, tal é a sua vontade em delegar as suas responsabilidades de decisão e em seguir o que é mais popular.

Ironia ou não, a mesma peça do Expresso não deixa passar mais um atestado de incompetência ao Governo, visto que a Organização Mundial da Saúde e vários países (Reino Unido, Finlândia, Holanda ou Canadá) têm este tipo de grupo de técnicos a trabalhar desde algum tempo.

6 Até os milagres têm os seus limites”. É assim que começa o editorial do último número da revista “The Economist”. O influente órgão de comunicação social inglês defende que as vacinas não vão acabar a curto prazo com a crise pandémica devido aos problemas de produção e à logística de vacinar a população mundial (7,8 biliões de pessoas), nomeadamente os países mais pobres. E aconselha os governos a concentrarem-se em soluções permanentes para que as diferentes sociedades consigam retomar a normalidade possível adaptada a uma ideia central: o vírus vai continuar a circular entre nós por mais alguns anos.

E por tudo isto pergunta-se: o Governo português já começou (mesmo) a planear não só a quarta vaga mas também o futuro do país neste contexto? Isso, sim, seria uma verdadeira revolução para António Costa.