Como disse o antigo primeiro-ministro finlandês, Alexander Stubb, “o nono alargamento da NATO desde a sua fundação, em 1949, vai ficar na História como o alargamento de Putin”. A invasão da Ucrânia deixou a descoberto, para quem ainda tivesse dúvidas, a dimensão das ambições revisionistas da Federação Russa e a ameaça que elas representam para a segurança e estabilidade da Europa. Mas, mais do que um momento de redefinição estratégica, o alargamento de Putin é também uma oportunidade para um posicionamento mais assertivo e claro da NATO naquilo que será o grande debate ideológico deste século: entre as Democracias Globalistas e os Autoritarismos Nacionalistas.

Criada no rescaldo da Segunda Guerra Mundial e na sombra da Cortina de Ferro, a NATO tinha como principal missão “manter os americanos dentro, os russos fora e os alemães em baixo”. Com o colapso do Bloco de Leste e o fim da Guerra Fria, nasceu uma esperança efémera de que este aforismo de Lord Ismay, primeiro secretário-geral da NATO, não chegasse ao século XXI e que este século fosse marcado pela integração da Rússia como parceira de segurança e estabilidade no continente europeu. A invasão ilegal, imoral e irracional da Ucrânia pela Rússia deu uma nova vida ao aforismo de Lord Ismay em que apenas se altera a necessidade de “manter os alemães em baixo”. A Federação Russa é novamente a principal ameaça à segurança e estabilidade da ordem regional europeia e a Aliança Transatlântica é a única base sólida e credível para conter as ambições desmesuradas do regime de Putin.

Fundada sobre a obrigação do Artigo 5º que torna um ataque a qualquer membro da aliança num ataque a todos, a NATO organiza-se estrategicamente para a defesa do Atlântico Norte num sistema de segurança que compreende uma linha da frente (a Europa), uma retaguarda (a América do Norte), um flanco norte (a Escandinávia), um flanco sul (a Europa do Sul) e uma ligação entre a frente e a retaguarda (os Açores, no meio do Atlântico, e a Islândia, no Círculo Polar Ártico).

Da invasão da Geórgia, em 2008, ao envolvimento militar na Guerra Civil da Síria; da anexação da Crimeia ao fomento da secessão em partes do Donbass, em 2014; da atual Guerra na Ucrânia às constantes movimentações militares destinadas a ameaçar os seus vizinhos; sem esquecer os constantes ciberataques, é cada vez mais evidente o projeto da Rússia destinado a destruir a ordem europeia pós-Guerra Fria, ameaçando diretamente alguns destes flancos estratégicos do sistema de segurança defendido pela NATO.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Particularmente, o Báltico tornou-se num palco crucial para as equações de segurança europeia. Os Estados da Escandinávia têm a sua segurança ameaçada pelas constantes pressões e ameaças militares da Federação Russa que usa o seu enclave de Kaliningrado como uma lança apontada ao coração do mar Báltico. As antigas repúblicas da União Soviética nesta região, bem como na Europa de Leste, hoje independentes, temem pela sua liberdade e soberania. A adesão da Finlândia e da Suécia à NATO representa um contributo essencial para a segurança do Mar Báltico e a viabilidade do Flanco Norte da Aliança Atlântica, juntamente com a Noruega, a Dinamarca e a Gronelândia.

A magnitude da importância destas adesões pode medir-se também pela dimensão da inversão das políticas externas destes dois países escandinavos até há poucas semanas considerados como neutrais. No caso da Suécia, esta rompe uma neutralidade de mais de duzentos anos que remonta ao rescaldo das Guerras Napoleónicas e às origens do sistema internacional de Viena. No caso da Finlândia, a sua neutralidade consistia numa marca fundamental e, em certa medida, condição da sua independência na década de 1920: nascida entre o Ocidente e a URSS, a Finlândia apoiou-se na sua neutralidade para garantir a estabilização e florescimento das suas instituições democráticas.

A neutralidade da Finlândia e da Suécia resistiu à Guerra Fria, mas não resistiu a Putin e às suas ambições revisionistas. A explicação desta inversão pode certamente encontrar-se na ameaça estratégica e de segurança que a postura militar da Federação Russa e as suas ações representam. Contudo, esta decisão enquadra-se também num conflito mais amplo entre as Democracias Globalistas e os Autoritarismos Nacionalistas que florescem um pouco por todo o globo.

De facto, para além de ser uma aliança militar, a NATO é parte integrante da mais vasta Comunidade Pluralista de Segurança do Atlântico Norte, uma comunidade de interesses, mas também de valores. O preâmbulo do Tratado de Washington proclama precisamente isto: que os Membros da NATO estiveram, estão e estarão sempre “decididos a salvaguardar a liberdade, herança comum e civilização dos seus povos, fundadas nos princípios da democracia, das liberdades individuais e do respeito pelo direito”. No mesmo sentido, e antes mesmo de vincular os Membros da Organização a uma estreita aliança militar, o Artigo 2º do mesmo Tratado vincula-os a contribuir “para o desenvolvimento das relações internacionais pacíficas e amigáveis mediante o revigoramento das suas livres instituições, melhor compreensão dos princípios sobre que se fundam e o aprofundamento das condições próprias para assegurar a estabilidade e o bem-estar”.

A Contenção imaginada por George Kennan no início da Guerra Fria, em que a NATO serviria de contrapoder à expansão dos interesses geopolíticos da União Soviética, deve ser repensada para os desafios do novo século. Na era da globalização e da digitalização, os regimes autoritários e nacionalistas, como o da Federação Russa, mas também da República Popular da China, ameaçam as democracias globalistas de formas cada vez mais insidiosas. No caso da Rússia, para além da ameaça militar e estratégica da sua crescente assertividade geopolítica, o regime está empenhado em minar os próprios fundamentos e estabilidade dos regimes democráticos, quer através de guerra digital e de campanhas de desinformação, quer através do financiamento e apoio de movimentos políticos iliberais, nacionalistas e populistas, muitos deles apoiados e financiados diretamente a partir dos corredores do Kremlin.

Estas ameaças são reconhecidas claramente no novo Conceito Estratégico da NATO, aprovado na Cimeira de Madrid de 2022. Neste documento, os membros da Aliança Atlântica declaram que os “atores autoritários desafiam os nossos interesses, valores e modo de vida democrático” e que, para além da ameaça militar e estratégica que representam, estes “exploram a abertura, conetividade e digitalização das nossas nações”, “interferem com os nossos processos democráticos”, “promovem campanhas de desinformação, instrumentalizam migrações, manipulam o acesso a fontes de energia e utilizam coerção económica”. Para além disso, estes regimes estão também empenhados em “minar as normas e instituições multilaterais”, fundamentais para o normal funcionamento do Direito Internacional na promoção da Paz e da Estabilidade, e “promovem modelos autoritários de governo”.

Sendo fiel aos seus princípios fundadores e para responder aos desafios que o grande conflito ideológico do novo século apresenta, a NATO do século XXI e os seus membros devem empenhar-se em recuperar a superioridade moral na defesa dos seus valores fundamentais: democracia, liberdade, direitos humanos e Estado de Direito. Para isto, é fundamental reconhecer os erros do passado. Nomeadamente, os excessos cometidos em defesa de uma ideia de democracia militante, por exemplo, nas intervenções no Afeganistão e no Iraque. Mas é também crucial fortalecer e estreitar os laços que unem os regimes democráticos na proteção do seu modo de vida constitucional e na proteção de uma ordem internacional liberal e fundada na segurança normativa de um Direito Internacional multilateral que fomente a Paz e a Estabilidade.

A comunhão de valores e princípios dos países da NATO não pode ser uma mera coincidência histórica. Deve antes constituir a sua própria razão de ser. As guerras ilegais, injustificadas e imorais são o apanágio da política dos tiranos. Uma Aliança de Democracias contribui genuinamente para a paz através da fidelidade aos seus princípios comuns, usando a força militar não para o engrandecimento do seu poder, ou para a mera prossecução dos seus interesses egoístas, mas sim para a defesa das suas preciosas liberdades e em estrita observância das normas de Direito Internacional.

Uma aliança militar atlântica é um vigoroso instrumento de Dissuasão das intenções beligerantes da Federação Russa que hoje ameaçam a estabilidade e segurança do continente europeu. Mas uma aliança militar de democracias é um poderoso e autêntico instrumento de contenção da Rússia e de todos os autoritarismos que ameaçam os povos livres em qualquer parte do mundo, do continente europeu ao Indo-Pacífico. A NATO do século XXI não se pode limitar a ser um contrapeso estratégico e militar aos exércitos dos regimes autoritários, nacionalistas e revisionistas. Ela deve também transformar-se num contrapeso moral e ideológico neste grande conflito que se avizinha e contra os ataques políticos que os regimes autoritários dirigem aos regimes democráticos.

Para além da defesa das suas fronteiras, a NATO deve ser parte essencial de uma verdadeira Aliança de Democracias, na defesa da Democracia, da Liberdade, dos Direitos Humanos, do Estado de Direito, da Ordem Internacional Liberal. Só assim é que esta aliança se legitima à luz do Direito Internacional. Só assim é que ela pode servir de exemplo a todas as gentes que lutem contra o autoritarismo nas múltiplas faces que ele hoje apresenta. Só assim é que ela contribui verdadeiramente para a paz, a estabilidade e a liberdade.

Mas nada disto acontecerá se se deixar continuar a política como de costume. É dever de todos aqueles que exercem cargos públicos nos países membros da Aliança Atlântica reconhecer que esta é um era de profundas transformações e novos desafios. A Guerra Fria acabou, mas a História não chegou ao fim. Avizinha-se um novo conflito ideológico que vai pôr à prova a resiliência e convicção dos democratas em todo o globo. Nas palavras de Gore Vidal no romance Empire (1987), “when history starts to move underneath you, you’d better figure how you’re going to ride it, or you’ll fall off”.