As relações parecem, na maioria das vezes, um refúgio. Um lugar, longe de tudo, onde duas pessoas se protegem do mundo. (O que poderia não ser mau. Porque isso daria a uma relação uma sensação muito parecida com aquela que se tem como quando temos uma casa na árvore. E, por cima do nariz de todos, olhamos as coisas e as vemos mais longe. E, por mais que ela seja só um “cantinho”, sentimos o arrepio de perceber que “o nosso mundo” não é uma construção imaginária mas que representa, antes, um espaço tangível. Ele existe! E tem um cheiro; inimitável. E é um lugar, por mais acanhado de espaço que ele seja, que nos dá largueza àquilo que pensamos e que abre espaços sobre espaços no nosso coração.)  Mas, não. Na maior parte das vezes, uma relação parece um lugar onde duas pessoas parecem refugiar-se, sobretudo, uma da outra. E isso é estranho. Porque, em vez de nos dar pontos de vista e paz – e a sensação de termos um espaço dentro de alguém que sente connosco e que pensa por nós – uma relação acentua a sensação de sermos refugiados. De andarmos à deriva e de estarmos em casa. Tudo ao mesmo tempo. O que faz com que, todos os dias, aquilo que podia ser só amor se transforme numa solidão. Incansavelmente persistente.

Não sei porquê, mas eu acho que falamos do amor como se ele acontecesse com “naturalidade” na nossa vida. Como se, ele próprio, fosse “muito natural”. Uma manifestação quase “biológica”. Ou um eco-sistema que mantém as suas características originais invioláveis, sem ter sido, ainda, conspurcado pelo progresso. E, mais que um íman que nos puxe, que o amor fosse um percalço do qual não se tem como fugir. Um “tem que ser”. Uma espécie de puberdade mais tardia. Ou um destino com a hora marcada. Em que esta ideia de “com naturalidade” nos coloca entre a sensação de que só precisamos de deixar “as coisas” acontecer. Sem que seja necessário o que quer que seja para fazermos com que elas aconteçam. E houvesse em nós todos uma sabedoria, semelhante a um instinto maternal, que nos tornasse “naturalmente” capacitados para o amor. O que não é verdade.

O amor não é natural! E, deixe-mo-nos de coisas, o amor não é “normal”. Tirando a necessidade do amor para nos sentirmos vivos, nada é natural no amor. O amor é trabalho! Precisamos de estabelecer metas. De definir compromissos. De assumir conflitos. E de trabalhar (muito!), em equipa, para ele. Mais, até, do que seria… “normal”.

Claro que acabamos por não o dizer assim mas, a mim, parece-me que acabamos por associar o amor ao estarmos em férias. O amor dá-nos férias! Dá férias grandes às chatices e às “coisinhas” mesquinhas que arreliam. O amor areja os lugares esconsos e sombrios da nossa vida. E tira importância às pessoas insuportáveis que se sentem incomodadas com a nossa liberdade e que parecem querer que a burocracia tome conte do nosso coração. Como se a seriedade fosse uma senha, com um número; e não uma verdade que se constrói.

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É verdade que não estamos nos países nórdicos. Que temos sol. E que, aqui, nós (todos!), ao passarmos pela rua, se apanhamos uma janela aberta, de luz acesa, temos a mania de olhar para dentro das casas. E, um pouco da mesma forma, se realmente os olhos são como janelas, temos a mania de olhar para dentro das pessoas. E de as sentir. É verdade que, ao contrário das casas dos lugares mais frios, com aquilo que se passa connosco, as janelas abertas fazem com que o sol nos chegue, vindo de dentro. E que é por isso que, mesmo nos dias de férias, e o sol abunda e a luz ganha uma claridade que deixa tudo mais a nu, a forma “trombuda” como as pessoas andam entre a praia e um restaurante, ou o modo como aproveitam um pretexto qualquer, diante de um empregado delicado, para conspurcarem o mundo com o azedume que lhes vai nos olhos, ajuda a perceber que as pessoas são janelas que se fecham. Que diz quase tudo sobre o modo como parecem querer responsabilizar os outros todos pela forma como se sentem sombrias, por dentro. E mal amadas.

Por mais que não sejamos, minuciosamente, assim, eu acho que temos, quase todos, uma beleza triste. Porque nos falta sempre algum coisa para que nos sentirmos amados. E somos delicados, em demasia. E evitamos dizer não, que não nos sentimos nem aconchegados nem reconhecidos, em muitos dias. E, não, que não nos estamos a ter o colo e o mimo de que todos precisamos para sermos felizes. Que sim, que nos sentimos, muitas vezes, com uma sexualidade demasiado “mecânica”, pouco amável e quase-nada apaixonante. Como se duas pessoas, que são cúmplices, se afundassem uma à outra na mesma culpa. Sem serem capazes de se darem a mão para crescerem.

Não fica muito claro o que nos pesa mais e nos empurra para tanta consternação. Se a forma como nos vamos resignando a reconhecer que não conseguimos contribuir para que quem gosta de nós “mexa connosco” e nos transforme; e vice-versa. Se o modo como há um “tarde demais”, relativamente àquilo que somos, que nos leva a reconhecer que somos demasiado “normais” para que outros nos achem inimitáveis e singulares e lutem por nós; ao contrário daqueles que estão connosco e que não o fazem. Se uma sensação semelhante a “mais do mesmo” que nos faz sentir que não vale a pena renunciar aquilo que temos em nome de tudo o que nos falta; como se nunca saíssemos do memo lugar. Porque é que parece ser difícil sentirmo-nos amados por dentro, amados por fora, desejados e amantes? Porque passamos demais por cima das coisas que nos dão a convicção daquilo que nos falta para nos sentirmos amados. Porque reclamamos de menos. E porque nos foram fazendo sentir que é quase ilegítimo que não tivéssemos o dever de “querer tudo” para nos sentirmos amados.  E de lutar por isso. E nada é assim.

Assumamos que isso que os adolescentes descrevem como um “andamos um com o outro” (ou “andamos”, simplesmente) ocupou, muito depressa, o lugar do amor na nossa vida. E nos colocou numa espécie de “terra de ninguém” entre o estarmos sós e o sentirmo-nos amados. Que, conforme os dias, tão depressa nos leva até à amizade colorida como, a seguir, nos traz de volta “à Terra” e nos faz sentir um iô-iô. Do que precisamos para chegarmos ao amor é duma casa na árvore. Ou de um “refúgio” que seja um mesmo “nosso mundo” para dois. Um espaço para vermos mais longe. Uma janela com sol. Muito trabalho. E tempo para que o amor se aprenda. Entre protestos, se for o caso. Para que, passo a passo, duas pessoas se tornem cúmplices das mesmas “férias”. E, sendo assim, o amor seja, como só ele é capaz, um espaço tangível. Inimitável! Na verdade, de entre tudo o resto, o que há de mais “fora do normal”.