1. Macron tinha-se tornado obrigatório. As circunstâncias políticas e o que de raríssimo foi capaz de fazer politicamente transformaram-no no destinatário quase “natural” do voto, fosse na pele de bem maior, fosse na de mal menor. Marine Le Pen ajudou ao triunfo, ao tornar-se devastadoramente inverosímil no debate televisivo que opôs os candidatos mas o facto é que está ancorada no radar político. Será melhor fazer caso dela, a Frente Nacional veio foi para ficar e daqui a cinco anos há mais. E até lá ninguém quererá ter a rude Marine a comandar o batalhão da oposição no hemiciclo francês. O combate ou é agora pela direita ou não é. Os conservadores estão obrigados a derrotar ou reduzir drasticamente a direita nacionalista. Na França de Macron e com Macron, o jogo de xadrez será jogado com maior urgência e veemência entre as direitas. O quadro no PSF (qual PSF, para já?) é tão pouco claro que torna absolutamente impossível vaticinar ou prever hoje o que quer que seja.

Seja porém qual for o resultado de Junho, festeje-se o momento de Maio: salvou-se o essencial, o que é muito e, na ocorrência, é quase tudo: não implodiu a V República e a “Europa” poderá não ir ao fundo de vez.

Agora há Macron, o seu olho azul e a sua (intencional, estou certa) postura de anjo mítico descido do céu da França conforme vimos no seu tão doce, contido, bondoso primeiro discurso de vitória. Não estou a brincar nem a fazer uma redação que me chumbaria num exame da primária, estou a descrever o que o mundo viu: um anjo de olhar claro e maneiras apropriadas a um anjo apaziguador. Messias portador da nova luz de um Movimento com as suas iniciais.

Uma hora depois, no Carrocel do Louvre (a escolha do local e a moldura da pirâmide de Pey, deixaram uma nova assinatura política), o jovem presidente pôde soltar-se, o anjo já dera sinal de si. Fala-se em De Gaulle e mesmo em Napoleão quando se evoca o novo Chefe de Estado e ele próprio não desilude na matéria: a quem insistia para que concretizasse o seu programa político, costumava cortar cerce: “não se pedia ao general Gaulle que tivesse um programa”.

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Sim, Emmanuel Macron sabe ao pormenor e ao minuto o que está a fazer: encarnar num mito. Um misto de pai, chefe, condutor do povo, inspirador das massas. Emmanuel quer dizer Deus connosco. Pode ser perigoso.

Ainda lhe faltam tropas e nesse sentido, qualquer das etapas das legislativas será bem mais delicada e pesada de consequências do que foi a segunda volta presidencial. Produzir um partido, muni-lo de generais políticos e de exércitos parlamentares eis o “enjeu” que reforçaria o mito do anjo — encenador de uma França esperançosa e aberta em vez de ressentida e dividida. (Macron precisará de 289 deputados para governar com a “sua” maioria conforme ditam os mandamentos da V República que cumula os seus chefes de Estado com amplos poderes).

Depois de desenferrujar a França (conseguirá?) compete-lhe ainda mais. Numa frase “roubada” a Joschka Fischer compete a Macron “a imensa responsabilidade de juntar os franceses” (saberá?).

2. Sinal da leveza dos tempos (em que alguns vêm uma vantagem e um sopro de”modernidade” e eu não sei que veja) a equipa de Macron, aqui há meses atrás, atirou para a Net com um “casting” gigante onde apenas se pedia o preenchimento de um formulário que, a seguir, um “comité“ macronista se encarregaria — como se encarregou – de triar, separando trigos e joios. O “En Marche” foi (em parte) feito assim. Um número indefinido (mas talvez não modesto) de futuros deputados têm a rede como fonte e simultaneamente selo de garantia.

Nada destas estranhezas impede a contestação de um feito pessoal e político de que há pouca memória e ao qual não pode obviamente ser alheia uma forma de qualidade intelectual e cultural e uma “forma mentis” aberta, ágil, enérgica. Abertura em vez de fechamento, avanço em vez de retrocesso. Embrulhadas ainda na inexperiência e na imaturidade e revistas pela tentação do messianismo.

Espera-se porém que o firme europeísta que é Macron seja agora capaz — agora que a França talvez se tenha tornado numa interlocutora mais credível — destrancar a porta de saída do letárgico impasse europeu. Lubrificando o eixo franco-alemão, e assim redimindo da sua actual inoperância o diálogo entre os dois países. O que a Alemanha e a França sabem que têm de fazer é tanto que a tarefa há-de uni-las mais que dividi-las. Após as legislativas de Junho em França e de Setembro na Alemanha, há que meter mãos à obra para convencer alemães e franceses a que nos convençam que a Europa ainda vale a pena. Iniciativas, sinais, passos em frente, precisam-se. Oxigénio também. Um traço de união entre o norte e o sul seria um bom sinal. O que está e como está não faz prova de vida. Ou Macron não quer mostrar o que (nos ) diz que vale?

3. Li no semanário francês Le Point, uma espécie de bíblia a que há muito me afeiçoei, esta pérola de Oscar Wilde: “ninguém sobrevive ao facto de ter sido estimado acima do seu valor”. Lembrei-me de Emmanuel Macron. Oxalá seja capaz daquilo que diz querer. Das convicções que diz ter e da França que quer praticar. Oxalá que as fadas que certamente em grande número se debruçaram há trinta e nove anos sobre o seu berço, não se distraiam pelo caminho. Que a sua oferta política “et de droite et de gauche” não desague no desastre; que aquela promessa obsessivamente repetida de que o seu Movimento “ não será de direita nem de esquerda”, não constitua a melhor receita para ele estar de acordo com toda a gente; que a inexperiência não lhe confunda o rumo, que a deslumbrada admiração por si próprio não o cegue nas escolhas.

Que, que, que. Mas já se sabe, na política, como na vida, há demasiados ques.

4. Tenho medo que não se tenha dado pela nossa conversa como eu gostaria e ele inteiramente merece. Entalada entre as eleições francesas e Fátima (actualidade oblige), o diálogo que tive com Diogo Infante aqui no Observador merece atenção. Assumo plenamente a responsabilidade – mais a imodéstia de que serei acusada – ao recomendar que se apeiem nessa estação. Por ele, claro está. Diogo Infante é um caso não apenas por ser um actor absolutamente excepcional, capaz de nos agarrar e depois deslumbrar em todos os registos cénicos – e já não seria pouco – mas by him self. A excelência do actor casa com a qualidade do homem. Quando o vejo no palco ou na televisão às vezes dou comigo a pensar – como agora, ao lado de Alexandra Lencastre, na espantosa versão de “Quem tem medo de Virginia Woolf” no Teatro da Trindade – quantas pessoas ali sentadas se aperceberão verdadeiramente do ser humano que o Diogo é: tanto encanto pessoal com aqueles seus modos de príncipe, tão inteligentemente culto, tão interessantemente conversador. E discreto, sério, subtil, sóbrio, nem uma palavra a mais, nenhuma a menos. O melhor que pode acontecer a uma entrevistadora de vocação.