Em Homo Deus. História Breve do Amanhã, Yuval Noah Harari formula um argumento fundamental para a compreensão da tecnologia algorítmica como ameaça ao paradigma liberal: “Um algoritmo que analise cada um dos sistemas que constituem o meu corpo e o meu cérebro pode saber quem eu realmente sou, aquilo que sinto e o que quero. Uma vez desenvolvido, um algoritmo semelhante poderá substituir os eleitores, os clientes e os observadores. Nessa altura, o algoritmo é que saberá, e terá sempre razão e a beleza estará nos cálculos.”

Para compreender o argumento de Harari, devemos clarificar o conceito de Liberalismo-com-letra-maiúscula como o projeto filosófico que assenta no seguinte pilar, legado por Immanuel Kant: a liberdade individual do ser humano. De acordo com Kant, só o homem é capaz de se emancipar das suas contingências e agir livremente, isto é, em conformidade com a Razão. Ao postular esta ideia, Kant consagrou o espírito da modernidade enquanto emancipação biológica: apesar de elemento da criação, o homem apresenta uma dignidade especial face aos restantes seres por ser capaz de se emancipar das suas condições biológicas. E aqui remontam todas as construções políticas que caracterizam a civilização ocidental dos últimos dois séculos: direitos humanos, limitação do poder político, Estado de Direito, responsabilidade jurídica, direito de voto ou liberdade de expressão.

O segundo pilar do Liberalismo, ainda na senda de Kant, corresponde à ideia de universalidade: todos os seres humanos partilham aquela dignidade especial, independentemente do seu contexto histórico, social ou político (é isto que justifica uma resposta política única: considerando a especial natureza humana, o projeto liberal deve ser aplicado universalmente). Neste sentido, o Liberalismo prossegue a reivindicação de universalidade da mensagem cristã: há algo que todos os homens partilham e que permite superar todas as diferenças. É assim que Richard Rorty defende a ideia de que o esforço liberal deverá ser o de “conseguir ver outros seres humanos como sendo ‘um de nós’ e não como ‘eles’.”

Esta narrativa liberal foi eficaz durante duzentos anos, apesar das reações pontuais que a desafiaram, e permitiu a consolidação de um mundo globalizado e a declaração de direitos universais assentes no postulado do homem livre. Mas tem vindo a ser sucessivamente questionada pela dinâmica científica que denuncia as suas limitações biológicas: Harari demonstra como o algoritmo põe a nu um homem que se pensa livre, mas que é suscetível a controlo tecnológico; e os mais recentes conhecimentos ao nível da microbiota intestinal desafiam a ideia de processo puro de decisão racional. A narrativa liberal criou-nos livres, mas a biologia parece não concordar. E o mesmo acontece com o postulado da universalidade.

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Na verdade, os estudos nas áreas da biologia e psicologia evolutiva têm revelado o modo como os nossos cérebros evoluíram a partir da colaboração de grupo e da oposição entre “nós” e “eles” enquanto mecanismo biológico de sobrevivência (o trabalho de Robert Sapolsky é particularmente relevante neste domínio). E se há períodos em que as narrativas filosóficas nos fazem domar esse património evolutivo (como aconteceu com o Liberalismo), o instinto biológico continua presente, como Jack London tão bem retrata em O apelo selvagem:

“E aprendia tudo isto não apenas por experiência, mas porque despertavam nele instintos há muito adormecidos. Todas as gerações domesticadas desapareciam dentro de si. De maneira vaga retrocedia à infância da raça, ao tempo em que cães selvagens vagueavam em alcateias pela floresta virgem caçando eles mesmos o seu sustento. (…) Eram eles que avivavam dentro de si a vida de outrora; e as velhas manhas timbradas na hereditariedade da raça eram as manhas atuais de Buck. Vinham até ele sem esforço ou revelação, como se tivessem sido sempre suas.”

Como pensar a política atual a partir daqui?

Enquanto o paradigma liberal se revelou capaz de melhorar materialmente as nossas vidas, os impulsos biológicos foram silenciados. Mas a partir do momento em que esse paradigma se fragilizou, regressaram os apelos selvagens de que a modernidade nos tentou emancipar. Parece que podemos colocar camadas de civilização sobre este bicho humano e, ainda assim, os mecanismos biológicos continuam presentes – despertando em tempos de incerteza, insegurança e medo.

E é precisamente esse o contexto das duas últimas décadas: a sociedade securitária após o 11 de setembro, a crise económica e a quebra da confiança institucional, as evoluções tecnológicas que a maioria de nós é incapaz de compreender e o sentimento de calamidade ambiental aumentam o sentimento de incerteza, insegurança e medo. A consequência é a ativação dos nossos mecanismos de defesa que nos conduzem ao apelo da tribo. Não admira, por isso, o crescente tribalismo político.

A esta luz, torna-se possível uma compreensão mais profunda de dois fenómenos políticos atuais: a lógica agressiva das políticas identitárias e o crescimento dos movimentos populistas. De facto, na medida em que colocam no espaço público uma narrativa de pertença tribal, as políticas identitárias, de esquerda ou de direita, geram reações equivalentes do outro lado: o “nós” que nos é apresentado atira-nos para um “eles” (trincheira sem redenção) e fomenta a tribalização do espaço público. Já o crescimento dos movimentos populistas, de esquerda ou de direita, se justifica pelo aproveitamento do clima de incerteza, insegurança e medo, pois oferecem uma narrativa de pertença à tribo que produz um sentimento de segurança e diminui os níveis de ansiedade. Estes dois fenómenos tenderão a crescer num contexto pandémico que promove o medo generalizado e que fomentará, por isso, os fenómenos iliberais. Estes proliferarão rapidamente porque, afinal de contas, a biologia não é liberal.