Os eventos dos últimos meses, e das últimas semanas em particular, viraram as nossas vidas do avesso, sendo frequente vermos no espaço público a discussão em torno do mundo que virá quando a pandemia terminar.

Embora esta seja uma discussão importante, paralelamente tem-se verificado uma tendência que já não é nova: a procura por responsáveis, no julgamento permanente das coisas. Seja a esquerda radical que manchou as estátuas de figuras importantes da nossa História; sejam os jovens que realizaram festas que se tornaram focos de contágio da Covid-19; sejam os políticos que pedem contenção no desconfinamento, mas depois não adotam essa postura eles próprios. Não discuto a pertinência destes temas. Discuto sim o facto de que certamente o leitor olhou para estes exemplos que acabei de identificar e sentiu-os como estando do lado errado das coisas. Normalmente, esta tendência vem associada a uma outra, que é a dos arautos da virtude: nós, católicos, que tomamos as dores do Padre António Viera e consideramos que este é um problema mais profundo e que tem a ver com a ortodoxia marxista (seja lá o que isso for) que procura manipular toda a sociedade; nós, os cidadãos, que somos prejudicados por meia dúzia de miúdos irresponsáveis que põem em causa o esforço de uma nação inteira; nós, os cidadãos, a quem foi proibida a fruição de festivais de verão ou de jogos de futebol, mas que depois vemos o Primeiro-Ministro falar que a final a oito da Champions realizar-se em Portugal é uma recompensa para os profissionais de saúde.

Em todos os campos e momentos da vida somos levados a um juízo moral que tem sempre os que estão certos e os que estão errados. Esta nova realidade social é mais complexa e profunda do que à partida conseguimos percecionar. Ela tem efeitos na nossa vida e nas decisões que se tomam. Decisões essas que têm impacto no nosso presente e no nosso futuro. Não haja dúvida que é este caldo social – em que estamos permanentemente à procura de um lado para nos entrincheirarmos, contra outro igualmente entrincheirado – que conduziu à eleição de personagens como Donald Trump ou Jair Bolsonaro ou à escalada nacionalista e autoritária que abre espaço para que seja aceitável que políticos em Portugal se sintam à vontade para afirmar que não há racismo no nosso país. A cultura do permanente conflito corrói as bases das sociedades democráticas, cujos alicerces são fundados na ideia de que “eu posso discordar de ti, mas lutarei até ao final da minha vida pelo direito que tu tens de dizê-lo”. Essa empatia para com o outro, mesmo que o outro esteja na barricada contrária, é o pilar que funda o encontro entre opiniões divergentes e que juntas constroem as sociedades democráticas.

No entanto, desengane-se quem acredita na novidade deste clima de crispação e distância social. A tendência para o julgamento popular sempre existiu, bem como as dificuldades de integração social de quem julga o seu par como diferente por um qualquer fator identitário. O que é novo hoje não é a existência do conflito, mas sim a sua absorção do espaço público. É esta absorção que merece ser hoje estudada, porque só quando conseguirmos entender o que nos fez chegar aqui é que seremos capazes de definir um novo rumo.

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A meu ver, são quatro os fatores que contribuem para a sociedade do conflito. Em primeiro lugar, o fim do progresso social e das virtudes da globalização. No episódio de 28 de junho do programa “a espantosa realidade das coisas”, da TSF, o sociólogo Paulo Pedroso, acerca de uma entrevista do economista Dani Rodrik e do seu trilema da globalização, dizia que as sociedades modernas têm assistido a um aumento exponencial das desigualdades que põe em causa o estado-providência, principal responsável por compatibilizar democracia e capitalismo e que levou ao progresso social e económico a que assistimos na segunda metade do século XX. A paz social também encontrou respaldo no facto de, durante este período, o progresso social ter sido praticamente constante, cumprindo-se (pelo menos parcialmente) o sonho de Olof Palme de que os pobres deixassem de ser pobres (ou menos pobres, para ser justo com a realidade), não tendo necessariamente os ricos de deixarem de ser ricos. A partilha de riqueza criou um consenso em torno do capitalismo e da globalização que hoje já não é mais possível de sustentar, pois o progresso constante já não existe. Assim, a ausência da riqueza possível de ser alcançada por todos, em maior ou menor quantidade, leva-nos a olharmos para o que o outro tem e fazer uma comparação – que nunca é justa, porque é feita em causa própria – com o que nós temos.

O segundo fator, e que decorre diretamente do primeiro, tem a ver com a ausência de uma identidade. A crise social e económica que, embora com altos e baixos, tem estado connosco a nível mundial já há quase duas décadas, é também uma crise de identidade para com o modelo social e económico que temos hoje. Após a segunda guerra mundial e até ao início da década de 90, a nossa identidade era o mundo livre e a economia de mercado que descreviam o ocidente como o lugar em que todos podiam e quereriam viver. Mas essa identidade também se fazia pelo seu contrário, que era o mundo comunista, a oriente. Com a queda do muro de Berlim, a união em torno do inimigo comum acabou, acreditando-se que o futuro era de prosperidade e bonança para o Ocidente. Embora a prosperidade tenha existido a espaços em algumas partes do mundo, este esqueceu-se da maior lição que a história nos pode dar: nenhum império é absoluto ou perpétuo. Talvez deliberadamente – porque o ser humano tem a tendência para não prestar atenção às falhas enquanto lhe é possível desfrutar das virtudes – não demos a devida importância aos defeitos e às insuficiências deste modelo, antes de estas se tornarem tão ou mais evidentes do que a fortuna que o modelo nos trouxe (e traz). Assim, estamos perante uma crise existencial do modelo social e económico sob o qual temos vivido nos últimos 70 anos: um modelo que já não tem ninguém a quem possa dizer que é melhor e um modelo que já nem a si próprio é capaz de afirmar confiantemente que é o melhor.

O terceiro fator, também ele consequência dos dois primeiros, liga-se à erosão das instituições que construíram a hiperglobalização e que são também as suas principais reguladoras. A eleição de Donald Trump não deve ser entendida apenas como um episódio falhado no decurso do tempo. Principalmente, porque ela representa uma mudança na forma como os Estados Unidos veem o mundo. Os EUA constituíram-se para as sociedades modernas e para as democracias liberais como os líderes do mundo livre. Maior ironia não podia existir quando hoje encontramos à frente dos destinos dessa nação-referência alguém com uma política isolacionista. É a maior demonstração daquilo que está refletido no ponto anterior. A sensação de fim leva à necessidade de encontrarmos novos rumos, novas ideias, novos personagens. E embora nada disto seja novo, os populistas da atualidade têm o mérito de terem conseguido ler a história e percebido que as circunstâncias atuais são semelhantes àquelas que o mundo vivia no final dos anos 20 do século passado. Reunidas as condições, facilmente se despoletou a peça essencial em tempos de frustração: a existência de inimigos que precisamos de derrubar. É a causa necessárias e útil aos populismos. Dá-nos um sentimento de luta a fazer, de batalha a enfrentar, motivando-nos com base nos nossos sentimentos mais primários de conquista e aceitação. E as instituições, muito ligadas ao modelo que está gasto, deixaram de se constituir como símbolos, perdendo a sua importância e a sua influência, condenadas ao lugar de vozes que o vento leva e que ninguém ouve. É o novo “inimigo comum”, de acordo com o já abordado no ponto anterior.

Por fim, o último fator é também uma degenerescência semelhante à do ponto anterior e tem a ver com a amplificação desses sentimentos primários, pela perda de utilidade na mediação que é feita pelo quarto poder. A era das redes sociais dá ao mundo a capacidade de se expressar sem o crivo de ninguém. Mas esse crivo é o que permite que as mensagens sejam claras e entendíveis, diminuindo-se o ruído em torno de cada acontecimento. Embora existam muitas virtudes na existência de plataformas de comunicação como o Facebook, o WhatsApp ou o Instagram (só para citar algumas das mais conhecidas), a realidade é que não são meios de comunicação social. Não têm código deontológico nem estatuto editorial. Não têm valores. Mas criam informação, subordinando muitas vezes a comunicação social aos factos que criam. Esta lógica subverte anos e anos de aprofundamento acerca da forma como a informação deve ser conhecida pelo público em geral, misturando inevitavelmente a informação e o entretenimento. A isto associa-se, tendo em conta tudo o que já disse antes, uma cada vez menor importância do papel que a cultura e o conhecimento têm nas nossas sociedades. É aquilo a que o escritor Mário Vargas Llosa chamou a “civilização do espetáculo”. A ideia de que a cultura serve o único propósito de nos entreter conduz à inversão dos papéis da intelectualidade e da brutalidade, porque a brutalidade é muito mais imediata, mexe muito mais com as nossas sensações e com os nossos sentidos, aumentando também a adrenalina nos nossos corpos. E essa necessidade de nos sentirmos vivos, aliada ao facto de que atualmente estar vivo significa estar entretido, conduz à permanente necessidade de conflituar ou discordar de alguém.

Todavia, este cenário, como tudo na vida, não é inquebrável. Os políticos e os decisores precisam de ter a coragem para diminuir os ritmos imediatistas do nosso tempo (para que parem os nossos, têm primeiro que parar os deles) e fazer aquilo que a história nos impele a fazer: no fim de uma era, definir os desígnios para uma nova, sabendo, no entanto, que a história é ininterrupta mas cíclica, devendo o futuro construir-se tendo presentes as explicações do passado. E esses desígnios devem ser entendíveis e palpáveis pelas pessoas. Pois para sentirmos empatia entre nós, primeiro temos de ser capazes de sentir empatia com o nosso destino. E, como diz o Nuno Markl, o fim do mundo é o fim da empatia.