Num conto de sublime ironia publicado em 1922, escreve Fernando Pessoa em nome do banqueiro anarquista: «Procurei ver qual era a primeira das ficções sociais… A mais importante, da nossa época pelo menos, é o dinheiro… Como podia eu tornar-me superior à força do dinheiro? Como subjugar o dinheiro, combatendo-o? Como furtar-me à sua influência e tirania, não evitando o seu encontro? O processo era só um – adquiri-lo em quantidade bastante para não lhe sentir a influência; e em quanto mais quantidade o adquirisse, tanto mais livre eu estaria dessa influência».

Logo a seguir, o banqueiro acrescenta: «Meti ombros à empresa de subjugar a ficção dinheiro, enriquecendo. Consegui… Trabalhei, lutei, ganhei dinheiro; trabalhei mais, lutei mais, ganhei mais dinheiro; ganhei muito dinheiro por fim… Confesso-lhe, meu amigo, que não olhei a processos: empreguei tudo quanto há – o açambarcamento, o sofisma financeiro, a própria concorrência desleal… Hoje realizei o meu limitado sonho de anarquista prático e lúcido. Sou livre». Mas só na ficção de Pessoa é que o banqueiro anarquista pôde concluir: «Quis combater as forças sociais; combati-as e, o que é mais, venci-as».

Mas não venceu. Como Pessoa sabia pertinentemente, as forças sociais são invencíveis, sobretudo as do dinheiro! A inspiração que tirei daquela ficção é de ordem metafórica, mas creio que o seu sentido é transparente. Uma imagem mais comezinha seria a do castelo de cartas que Ricardo Salgado e a família, como é agora costume dizer, foram erguendo na convicção que nunca viria abaixo. Mas veio. Muito por obra e graça da dita família, isto é, de dentro para fora. O banqueiro não contou com outras das mais importantes forças sociais: as rivalidades e as invejas da família e dos chamados amigos. Nem com a força da crise. Nem com a força da política – especialmente a política eleitoral – em que é certo e sabido que, mais eleição menos eleição, os «amigos» de hoje, como Sócrates, acabarão por cair, sobretudo quando já não for possível imprimir mais notas de banco a fingir de dinheiro que não há.

O que dizer então da forma como acabou, por ora, a tragicomédia do banqueiro anarquista? Uma coisa é certa: melhor do que alguém poderia imaginar ainda há muito pouco tempo. É exacto que muito foi escondido pelos reguladores, nomeadamente tudo o que ocorreu entre a demissão de Salgado e o fim-de-semana em que o BES foi dividido em «bad bank» e «good bank». Isso ter-nos-á custado no mínimo 3 mil milhões de euros, como se Portugal precisasse disso. Em compensação, foram muito significativas as contrapartidas políticas que o governo tem dado, aparentemente com o apoio do BCE e da Comissão Europeia, para os brutais custos económicos desta operação inédita, que nada tem que ver com a forma obscena como foram nacionalizadas as perdas e privatizados os ganhos do BPN.

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A ideia de que os depositantes foram salvos de vez – ainda que venha a revelar-se em parte falsa – é uma ideia duplamente nova. Primeiro, as perdas não foram estatizadas nem os ganhos entregues aos responsáveis pela catástrofe. Em suma, o Estado só assumiu a sua responsabilidade pela defesa dos depositantes, mas não dos accionistas. Em segundo lugar, o governo enviou um sinal político claríssimo de que a sua função não é substituir-se à iniciativa privada quando as coisas correm mal. É possível que muitas pessoas ainda não tenham percebido isso, mas a mensagem não tem duas interpretações. Na medida em que esta aposta governamental se confirme, desde que seja visível e entendida, isso não só dará dividendos eleitorais ao governo como, sobretudo, sustentará a orientação do país à desestatização e à redução do peso tentacular do Estado – na prática, a ditadura dos sucessivos governos – sobre a nossa vida social.

De resto, num país pequeno pertencente à mais vasta comunidade monetária do mundo com o mais amplo «estado social» existente à face da terra, mas sem escapatória à crescente pressão da globalização por países gigantescos que pouco ou nada têm de democráticos, ou seja, num país como Portugal, onde o Estado controlava directamente 53% do PIB, não havia, depois da grande recessão iniciada em 2007, outra alternativa se não reduzir e reduzir o peso do governo na sociedade. Com os custos que temos pago pelo ajustamento, abriu-se em compensação a possibilidade de, no fim do túnel, a sociedade portuguesa conseguir utilizar melhor os seus recursos, enquanto membro da UE e da Zona Euro, no sentido de manter as suas aspirações sociais e equilibrar as suas contas públicas e privadas.

Não vou dizer que há males que vêm por bem. Nem pensar. Mas verifico de passagem que personagens como Mota Pinto, que era para ser nomeado para o BES o não foi, e como Granadeiro, que queria ficar na PT não ficou. Entretanto, os antigos «DDTs» desvaneceram-se do nosso horizonte. São migalhas perante o que nos custaram, mas ficam para memória futura e é disto que é feito o quotidiano da sociedade. Não é uma fábula, como a de Pessoa, mas pode ter sido um conto moral acerca da promiscuidade entre o dinheiro e a política que nos sirva de exemplo!