1 Não percamos tempo porque os personagens são reincidentes: tal como já tinha acontecido com Joana Marques Vidal, Vitor Caldeira foi despedido por Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa. Não há qualquer mandato único previsto na Constituição nem para o cargo de procurador-geral da República nem para o cargo de presidente do Tribunal de Contas. Marcelo e Costa inventaram essa treta para criar a ideia de que o afastamento de Marques Vidal e Caldeira era inevitável.

Não, não era inevitável. Só o foi porque correspondeu a uma decisão política do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e do primeiro-ministro António Costa de afastarem dois magistrados competentes, independentes e com provas dadas — com o líder da oposição Rui Rio a fazer novamente o papel de idiota útil político, como é costume.

Portanto, não vale a pena estarmos com receio do chamado Bloco Central. Ele já existe através de Marcelo, Costa e — e do personagem secundário Rui Rio que é chamado na hora certa para caucionar as decisões do Presidente e do primeiro-ministro. O Bloco de Esquerda e o PCP estão amarrados à obrigação de aprovarem o Orçamento de Estado, sob pena de serem responsabilizados por uma crise política, logo o país não tem oficialmente oposição.

Com o país a arriscar-se (alegremente) a ser a lanterna vermelha da Europa nos próximos 10 anos, com um Presidente refém de uma estratégia única e exclusiva de reforço do seu poder político pessoal, com um Governo que nunca nada fez para reformar o país e promover um crescimento económico sustentado e com um líder da oposição que não justifica minimamente tal título por pensar que um dia o poder lhe irá cair no colo, a pergunta que se coloca é bastante simples: como é possível que o arrivismo da direita autoritária do Chega não saia beneficiado com este contexto?

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2 Não tenho qualquer dúvida de que a perceção (fundamentada) de que a independência das instituições democráticas — uma questão essencial para um sistema de freios e contra-freios eficiente como é aquele previsto na nossa Constituição — está a ser destruída pelo PS de António Costa são um forte contributo para o desprestígio da República e para o crescimento de forças políticas intrinsecamente autoritárias e sectárias como é o partido de André Ventura. Mas não só.

Se esta mancha persistir, os danos reputacionais no Governo de António Costa poderão ter como consequência o afastamento definitivo do Bloco e do PCP — que engrossarão as narrativas populistas do Chega.

Tudo começou com o ataque sem precedentes a Carlos Costa — o governador do Banco de Portugal que tirou Ricardo Salgado da liderança do BES e o único que até agora pode dizer que tem uma sanção contra os gestores do BES transitada em julgado. Com ataques concertados entre António Costa, Mário Centeno e Catarina Martins, Portugal arriscou um conflito diplomático com o Banco Central Europeu por uma questão de sede de poder do PS e do Bloco. Vimos qual era o objetivo: colocar Centeno no Banco de Portugal e governamentalizar uma função que se quer independente.

Seguiu-se o caso Manuel Vicente — o caso mais vergonhoso dos últimos anos de condicionamento do poder judicial por parte do poder político nas pessoas do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e do primeiro-ministro António Costa. Sob pressão de Angola e de um João Lourenço que diz querer combater a corrupção mas protege um ex-presidente da Sonangol acusado de corromper o procurador português Orlando Figueira, Marcelo e Costa tudo fizeram para o Tribunal da Relação de Lisboa mandasse o processo para Angola.

A dificuldade do António Costa em lidar com o conceito de independência vai ao ponto de nomear Arons de Carvalho, um ex-ministro e um militante socialista para o Conselho Geral Independente da RTP – um órgão que fiscaliza e escolhe a administração da televisão pública. Um homem que acha que os governos de José Sócrates nada fez contra a comunicação social (quando a controlou e asfixiou financeiramente quem não conseguiu dominar) e que até acha caninamente normal que um ex-primeiro-ministro viva à conta de dinheiro emprestado por um empresário que tem negócios com o Estado. Parece que a independência para o PS só vale a pena se for exercida por um socialista.

3

Regressemos ao despedimento de Vítor Caldeira. Estando o verdadeiro Bloco Central já formado nas pessoas do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa (PS) e Rui Rio (PSD), pensando os três exatamente a mesma coisa sobre os até agora imaginários mandatos únicos, porque não acordam uma revisão constitucional em que essa questão fique clara que nem água no texto da lei máxima do país?

O segredo e a informalidade são sempre as melhores armas para conquistar ou manter o poder na política portuguesa — é uma espécie de herança do salazarismo que o regime democrático nunca soube expurgar de forma conveniente.

Por isso mesmo Marcelo, Costa e Rio (e muitos outros colegas de ofício) preferem a opacidade e a ambiguidade. Sabe porquê, caro leitor? Basta dar o exemplo concreto que estamos a tratar aqui: porque algum dia já lhes dará jeito renovar o mandato na Procuradoria-Geral da República ou no Tribunal de Contas. Quando for alguém que, ao contrário de Joana Marques Vidal e de Vítor Caldeira, seja dependente de cartões partidários ou de outra espécie, não tenho dúvidas de que António Costa proporá e Marcelo Rebelo de Sousa renovar-lhe-á o mandato.

O mais extraordinário desta tese/interpretação do mandato único é que quem cumpre o seu papel com profissionalismo, dedicação e, acima de tudo, com resultados, é despedido por uma razão totalmente desconhecida antes de ter iniciado o seu mandado. É a meritocracia virada de pernas para o ar.

4

Não espanta que o conselheiro José Tavares tenha sido o escolhido para suceder a Vítor Caldeira. O seu perfil de conciliador e a sua experiência de 25 anos como diretor-geral do Tribunal de Contas em que muitas vezes serviu de intermediário entre as entidade públicas fiscalizadas e o próprio tribunal, encaixa na perfeição daquilo que Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa e Rui Rio pretendem do TdC.

O problema é que se juntarmos as declarações de Mário Lino (ex-ministro das Obras Públicas), Paulo Campos (ex-secretário de Estadas Obras Públicas) e de Carlos Costa Pina (ex-secretário de Estado do Tesouro) nos autos do inquérito das PPP, reveladas aqui pelo Observador, com as de Rui Rio ao Expresso temos razões para nos preocuparmos.

Porquê? Porque Tavares é descrito como sendo um juiz conselheiro que colabora ativamente na procura de soluções para contornar ou impedir eventuais chumbos do Tribunal de Contas. Ou, nas palavras do Presidente Marcelo, “alguém que executou com lealdade orientações superiores na busca de prevenir tecnicamente conflitos, correndo riscos de exposição pessoal.”

O Tribunal de Contas é um órgão de soberania e os seus juízes são independentes do poder político. Se, por absurdo, a tese de José Tavares fosse aplicada em todas as jurisdições, então teríamos os juízes dos tribunais penais, cíveis ou administrativos a negociarem as decisões de recurso e a ajudarem ativamente os recorrentes. Seria uma espécie de justiça negociada ao contrário e um poder judicial submisso face ao poder político. É isso que o Bloco Central de Marcelo, Costa e Rio quer?

PS – Armado até aos dentes com as suas habituais meias-verdades e meias-mentiras e insulto gratuito na ponta da língua, Paulo Campos resolveu sair do bunker a que se tinha remetido após a prisão do seu querido líder. Campos regressou para aplicar os pequenos truques que aprendeu com José Sócrates num direito de resposta que enviou ao Observador e numa entrevista antológica que deu à SIC. Tal como aconteceu naquele período negro de 2005/2011, e independentemente de Campos e dos seus camaradas de seita não gostarem do meu trabalho, continuarei a fazê-lo: escrutinando os titulares de cargos políticos e públicos (atuais ou recentes) enquanto existir matéria factual para o fazer e relatar as conclusões à Opinião Pública.