É habitual dizer-se que todas as crises são oportunidades. Podemos identificar problemas, adaptar meios, inventar soluções, corrigir erros passados, melhorar respostas, juntar vontades, mobilizar populações e, até, unir adversários. Em Portugal, como em todo o mundo, tem havido um pouco de tudo, mais pouco do que muito, bem à medida do nosso tamanho e da pequenez da nossa política e governantes. É certo que não têm faltado apelos patrióticos à higiene e à defesa de grandes causas, desde a final da Liga dos Campeões à lavagem de mãos no WC, da negação de ajuntamentos à grandiosa Festa (com maiúscula) do Avante (com maiúscula e tipo maior se o editor tiver a gentileza). E tudo isto, como nos têm repetido, graças ao enorme e inimitável sacrifício do povo Lusitano (maiúsculas novamente) que dos tempos em que cuspia para o chão passou a descansar a máscara no antebraço (prática limpa que é de uso corrente entre governantes).

Passámos a ouvir falar de saúde como não era habitual. A saúde passou a ser um tema político, até porque a saúde tem agora problemas que são visíveis, politicamente danosos e de cuja correção podem surgir ganhos imediatos. O risco é agora e vê-se.

Ainda melhor, mais expressivo, foi o reconhecimento de que as populações são compostas de indivíduos e de que o comportamento de cada um influi na saúde de todos. Surgiu uma nova consciência gregária da saúde que deveria ser transposta para o combate às doenças não-transmissíveis. No caso da COVID-19, como em outras infeções de transmissão interpessoal, sem vetor, o enfoque está no dano que um infetado pode provocar num “saudável” ou, se preferirem, num não portador. No entanto, tal como nas doenças não-transmissíveis em que os comportamentos individuais podem proteger da doença, os cuidados de cada um com a sua saúde são também cuidados que beneficiam todos por diminuírem a carga de doença e a procura de cuidados de saúde, garantindo a sustentabilidade e continuidade das respostas nos serviços de saúde. Quanto maior for a atenção que cada um der à sua saúde, melhor será a saúde de todos e este efeito não é apenas o resultado da soma de saudáveis.

Descobriu-se que a Saúde Pública (maiúsculas, sff.) é uma disciplina fundamental. Os hábitos saudáveis podem ser vistos sob outra dimensão. Sendo a hipertensão arterial uma doença associada a maior risco de morte com a COVID-19, tal como a diabetes mellitus, até está reforçada a necessidade de comer menos sal, açúcar e gorduras, consumir menos álcool e fazer mais exercício. Sem surpresa sabe-se que quem fuma morre mais com a COVID-19, pelo que deixar de fumar por medo de morrer com a infeção com SARS-CoV-2 poderá ser um argumento mais forte do que o enfarte do miocárdio ou o cancro. Acresce que, conselho de médico, enfarte em tempos de COVID-19 não é boa ideia e de cancro é melhor nem falar. Ou seja, por causa da COVID-19 ficou claro que não se pode adoecer de coisa nenhuma, já que de coisa nenhuma o SNS pode tratar. Esse risco existe, mas estamos aqui para escrever sobre coisas boas.

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A COVID-19, ainda no campo da saúde pública, trouxe para a vista de todos, de forma brutal, o impacto da pobreza na saúde. E não só no “terceiro mundo”. Revelou os problemas das periferias da sociedade no que diz respeito à manutenção e proteção da saúde. E as respostas político-sanitárias, muitas vezes insensatas, sem base científica, excessivas e desajustadas às necessidades do todo social, estão a agravar o desemprego, a subsistência das famílias e, no final, a saúde física e mental de toda a população. O “bom” deste efeito está na possibilidade de os governos, finalmente, compreenderem o valor da “saúde em todas as políticas” e da avaliação de impactos na saúde quando decidem para o imediato, sem olharem para o médio e longo prazo.

Ficou também evidente que as intervenções em saúde têm de ser multidisciplinares e pluriprofissionais. Os profissionais de saúde ganharam prestígio e reconhecimento que as organizações profissionais não podem desbaratar, nem o governo desvalorizar.

A necessidade de combater a COVID-19 centrou a cabeça em torno de prioridades… embora nem todas as cabeças, como se pode ler no denominado “Plano de Recuperação e Resiliência”, um aglomerado de banalidades e generalidades – um Plano não é isso? – para nos manter entretidos e onde não há uma ideia concreta, fazível e calendarizada para a melhoria estrutural do SNS. Mas, se as prioridades ainda não são claras, não faz mal porque com a COVID-19 foi possível perceber que o essencial era comprar ventiladores chineses (funcionam?) e o acessório, justamente abandonado, seria treinar o maior número possível e desejável de médicos e enfermeiros no manejo das técnicas básicas de ventilação assistida e cuidados intensivos. Vá lá, há equipamento (dizem), não sabemos se há camas (dizem que são extensíveis, o que poderá apenas dizer que numa cama caberão mais dois doentes), mas não há pessoal treinado em quantidade suficiente. Um exercício de boa separação do que é essencial e do que é acessório. Para já, sempre com grande confiança na reserva estratégica, há hospitais a transformarem blocos operatórios em salas de cuidados intensivos, filas de espera a crescerem, doentes que esperam na rua para entrarem em hospitais e centros de saúde.

O bom disto tudo é que mostra quanto escassa é a capacidade de resposta e adaptação estrutural do SNS. Não sei se outro bem virá, mas é por demais evidente que o desígnio constitucional de garantir a proteção da saúde de forma geral, universal e tendencialmente gratuita não poderá, não pode ser só garantida pelo SNS.

Continuando nas coisas boas, o reforço da higiene pública poderá estar já a dar frutos na diminuição de infeções respiratórias virais, não por coronavírus, como se tem visto no hemisfério Sul, o que prenuncia uma época de gripe “suave”. Ainda bem. Que esta informação não sirva para desmotivar da imperiosa vacinação.

Temos mais investigação epidemiológica, em todo o Mundo, acompanhada de uma maior atenção às disciplinas básicas da biologia, bioquímica, bioengenharia e genética. Atrevo-me a dizer que até, por via da COVID-19, surgiram especialistas de tudo e mais alguma coisa, dos negacionistas aos intervencionistas, quase todos desconhecidos antes de aparecerem num qualquer telejornal. Devemos reconhecer que alguns são bons, outros bonzinhos e, obviamente, também há os “residentes” do costume. Esses, nunca falham e “sabem” de tudo.

Os mass media agradecem. A COVID-19 deu tema. Sempre é uma variação ao futebol. Mas talvez ainda aprendam que manter jornais televisivos de mais de uma hora, como espetáculo de entretenimento, sempre à volta da pandemia, é, digamos, cansativo.

A indústria farmacêutica, habitualmente demonizada, tem tido os seus momentos de vingança. Afinal os medicamentos são úteis, implora-se por mais, hão de fazer vacinas e, sem displicência, irão faturar milhões como jamais fizeram. Nesta lufa-lufa de apresentar serviço vão surgindo ensaios de todo o tipo, rapidíssimos e estatisticamente inconclusivos – a esperança é isso mesmo, acreditar no menos provável -, de todo o tipo e feitio. No meio desta bondade toda ainda podemos acabar por ter uma vacina de benefícios duvidosos e riscos certos se as autoridades sanitárias e regulatórias cederem à vontade dos políticos. Quero crer que, mau grado todas as pressões, um dos bons efeitos da pandemia será o reconhecimento do valor da ciência de qualidade, dos ensaios clínicos, quando bem feitos, e do papel regulador das agências nacionais e internacionais que controlam o fabrico, distribuição, venda e uso de medicamentos.

E, de repente, tudo é web. Já não se vai a lado nenhum. Só o dorso interessa. De pantufas, cuecas, em pelo, desde que da cintura para baixo, tudo vale. Aos soluços, solavancos, com mais ou menos luz, com ou sem praia no fundo, lá estamos todos a botar “faladura” a olhar para o écran. Desenganem-se os que acreditam na substituição dos atos médicos por esta emulação de proximidade, mas para efeitos de reuniões pequenas até reconheço que é útil. Além do mais, o método web tem a virtude de que os encontros são a horas ou o link expira.

E, finalmente, voltando ao princípio, nunca a comunidade internacional esteve tão próxima como agora. Queixamo-nos uns dos outros com um afinco nunca visto em tempos de paz. Paz, soi disant, porque a guerra está aí, contra o vírus, contra os confinamentos, contra os mal comportados, os infetados, os velhos, os lares, os recintos e os espaços encerrados, as lojas que vendam de noite, os centros de saúde – judiciosamente fechados para que os doentes não passem por lá -, os governos que não prestam (não é só o nosso) e tudo o que possa servir de bode expiatório.

PS. A campanha de vacinação nos centros de saúde vai ser caótica. Note-se que até entrar nos centros é de enorme dificuldade. Os doentes quase não conseguem ter consultas presenciais de medicina geral e familiar, por mais que nos andem a dizer o contrário. O SNS fechou-se com medo da COVID-19. A maioria dos meus doentes pede que lhes passe a receita para poderem comprar a vacina nas farmácias da comunidade e lá serem vacinados. Não seria esta a altura para comparticipar a 100% a vacina vendida nas farmácias para os utentes abrangidos por vacinação gratuita, nomeadamente os maiores de 65 anos?