1 Há cinquenta anos, como consequência de importantes investimentos feitos pelo Estado Novo, os caminhos de ferro portugueses apresentavam, globalmente, uma qualidade equivalente ou superior aos seus congéneres espanhóis.

A consolidação de uma bitola mais larga nos dois países ibéricos criou-lhes uma dificuldade extrema na sua plena integração europeia, só comparável à dos países de Leste, para lá da Polónia, que implantaram a bitola russa.

Em convergência com a Exposição de Sevilha de 1992 a Espanha tomou uma decisão política e estratégica fundamental. Felipe Gonzalez e o seu Ministro do Fomento Abel Caballero, apoiados numa poderosa e qualificada Direção Geral de Fomento, puseram em marcha um inovador serviço de transportes (infraestrutura e material circulante) em alta velocidade e bitola europeia.

Concebida embora para tráfego misto (nos padrões da época) a procura de passageiros da nova linha Madrid-Sevilha foi tal que alguns meses depois da sua entrada em funcionamento os proveitos da exploração já cobriam os respetivos custos.

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Uma novidade deste novo sistema de transportes é que absorve o tráfego aéreo e induz novos tráfegos geralmente não considerados nos estudos de procura.

Com os comboios bi-bitola, utilizados há vários anos na ligação Madrid-Paris e Barcelona-Genebra, e com intercambiadores em Córdoba e Sevilha, foi possível utilizar, desde logo, a nova linha para ligar Madrid a muitas outras cidades da Andaluzia.

Estava dado o arranque para uma verdadeira revolução em todo o sistema interno de transportes de Espanha. Com quatro mil quilómetros de vias de alta velocidade e bitola europeia, com alguns troços com terceiro carril isto é compatíveis com as duas bitolas, muitas aptas também para o tráfego de mercadorias, e com muitas obras planeadas e em marcha para completar este novo serviço, a Espanha é, três décadas e meia depois, outra realidade; socialmente mais próxima, potencialmente mais desenvolvida, mais competitiva e com maior aptidão para captar o investimento estrangeiro.

Uma nova rede ferroviária construída com 85% (ou quase) de financiamento comunitário!

Em meados dos anos 90 Abel Caballero, ainda hoje Presidente da Câmara de Vigo, apresentou no 2º Congresso da ADFER, presidido pelo Dr. Miguel Cadilhe, com a presença de muitas centenas de participantes e Autoridades, este grandioso projeto, hoje em dia só ultrapassado pela China.

2 A velha rede ferroviária portuguesa é, no essencial, herdada do Século XIX.

A sua conceção resultou da realidade de transportes da época e da visão política e estratégica dos dirigentes de Portugal nesse tempo, tal como das nossas relações externas.

Ela veio substituir o almocreve, a diligência, a mala posta, a navegação costeira e a navegação fluvial.

Teve em conta a prioridade concedida à ligação internacional, tendo a Espanha determinado a nossa ligação à fronteira em Badajoz.

Foi muito condicionada pelas enormes dificuldades em atravessar o Tejo.

A lenta construção da ligação internacional tornou mais premente a ligação ao Porto que obrigou a construir um ramal a que durante muitos anos se chamou Caminho de Ferro do Norte.

A essa realidade somou-se a notável visão estratégica, empenho e abnegação das principais figuras e entidades portuguesas do século XIX de que destaco D. Pedro V, Fontes Pereira de Melo, Mariano de Carvalho e os donos da Banca Comercial do Porto. Ou impuseram à Nação que o principal corredor das nossas ligações externas era (e será sempre) pelo vale do Mondego, usando a expressão de D. Pedro V, que esteve na génese da Linha da Beira Alta; Ou foram construir no interior de Espanha centenas de quilómetros de linhas para nos permitir a ligação à Europa, arriscando a falência das suas Empresas; Ou obtiveram de concessão grandes extensões de linhas férreas espanholas para assim furarem a chamada cintura de ferro que fora construída ao redor da nossa fronteira; Ou lutaram por obter nos mercados internacionais as melhores condições de financiamento da construção e/ou da exploração dos nossos caminhos de ferro.

Este sintético retrato pretende demonstrar o que somos ferroviariamente. Temos um sistema ferroviário deficiente, face à realidade económica e social dos nossos dias, que foi mantido vivo devido a algum empenho de vários Governos e à dedicação e sacrifício de sucessivas gerações de ferroviários.

Mas pretende acima de tudo sublinhar que não faz o menor sentido partir desta velha e condicionada rede para a criação do novo sistema de transportes de alta velocidade.

Quando um membro do Governo questiona os gestores ou os diretores de Empresas do sector, públicos ou privados, como devemos evoluir, ouve naturalmente o elencar das necessidades mais prementes e não certamente a revolução espanhola de que falei.

Acresce ainda que há muitas décadas Portugal não tem na área dos transportes um staff permanente, suficientemente dimensionado e qualificado, capaz de apoiar os governantes.

3 Como já sublinhei a criação de um novo sistema de transportes terrestres de alta velocidade é uma decisão política e estratégica e não técnica. Na sua conceção, tão ou mais importantes do que as amarrações com as principais estações da velha rede ferroviária são os interfaces com os aeroportos ( e os portos nas novas linhas mistas).

Hoje temos quase três décadas e meia de atraso em relação a Espanha.

E não tinha que ser assim! Vários foram os momentos em que rumámos na direção certa.

O Eng. João Oliveira Martins foi o mais experiente e sabedor dos Ministros que nas últimas quatro décadas tutelou o sector ferroviário. Contemporâneo do nascimento da alta velocidade em Espanha tomou medidas necessárias à modernização do País.

Por RCM de Fevereiro de 88  fez aprovar o Plano de Modernização e Reconversão dos Caminhos de ferro, que previa a modernização (integral mas moderada) de todos os itinerários principais e secundários e a construção de linhas novas entre o Poceirão e Sines, entre Évora e Elvas e entre Pragal e Pinhal Novo.

Também por RCM de Dezembro de 88 foi tomada a decisão no sentido de que as novas linhas de alta velocidade fossem construídas em bitola europeia.

No caso da Linha do Norte a modernização moderada seria acompanhada da introdução dos comboios de suspensão pendular ativa, o que exigiria a construção das curvas de transição ou de concordância, e só por si introduziria economias significativas no tempo de percurso (atuais Alfa).

Os primeiros estudos sobre o novo sistema de alta velocidade e bitola europeia foram imediatamente postos em marcha e concluídos ainda nos anos 80 e primeiro semestre de 90. As melhores empresas, dessa época, da especialidade, da França, da Espanha, do Reino Unido e de Portugal efetuaram esses trabalhos.

As novas ligações Lisboa-Porto, Lisboa-Madrid e Porto-Vallodolid foram estudadas. Ainda hoje constituem itinerários integrados no Eixo Atlântico da UE que devíamos estar a construir.

A queda do Ministro fez soçobrar o projeto da alta velocidade.

O Ministro Jorge Coelho, com o rasgo e a intuição que lhe eram próprias, tomou uma crucial decisão ao criar uma Empresa para retomar o projeto do novo sistema de alta velocidade, independente da gestão da velha rede ferroviária. Algo parecido se continua a seguir em Espanha.

A sua saída do Governo perturbou irremediavelmente o projeto.

Na Cimeira Ibérica da Figueira da Foz Durão Barroso e Aznar celebraram o acordo sobre as novas ligações internacionais do sistema de alta velocidade. Além das ligações principais referidas e hoje parte do Eixo Atlântico da UE, incluiram-se também as de carácter mais regional Porto-Vigo e Faro-Huelva.

Sublinho o importante papel do Ministro Carmona Rodrigues e recordo que esta já era a rede da RAVE de Jorge Coelho.

Essas foram as bases para que Portugal e Espanha pudessem caminhar juntos e cooperantes na construção dessas ligações. Por culpa nossa isso não aconteceu, ao mesmo tempo que se enganava a população com o que evoluía em Espanha.

O Primeiro Ministro José Sócrates ainda tentou pôr em marcha este projeto. Lançou um concurso para a ligação Poceirão-Fronteira do Caia que compreendia uma via dupla de bitola europeia em todo o percurso e uma via única de bitola ibérica entre Évora e Elvas. Foi ganho pelo Consórcio Ellos e anulado pelo Governo seguinte.

Ao longo de todos estes anos as principais associações empresariais do País, nomeadamente a CIP, sempre militaram a favor de um novo sistema de alta velocidade apto para tráfego misto, que lhes permitissem, sem constrangimentos, levar as nossas exportações também para lá dos Pirinéus, já hoje com um peso financeiro superior às destinadas a Espanha.

4 A nomeação, em meados de 1990, do Ministro Ferreira do Amaral para tutelar os transportes trouxe uma mudança radical da política do transporte ferroviário. Ele entendia, como está reproduzido na comunicação social da época, que Portugal não tinha dimensão para ter um novo sistema de alta velocidade. Rompeu com a política aprovada antes pelo Conselho de Ministros e decidiu mandar proceder à profunda modernização da atual Linha do Norte.

Foi uma decisão comparável ao que teria acontecido se alguém tivesse mandado construir a A1 no leito da EN1 com a agravante de na ferrovia ser tudo extraordinariamente mais complexo.

A experiência dos utentes da Linha do Norte (apesar dos pendulares Alfa que não estão em causa), ao longo de quase três décadas e meia de modernização, ajudam a atestar quão trágica e ruinosa foi esta decisão.

Após todos estes anos apenas estão completamente modernizados os troços,

Lisboa-Alverca

Azambuja-Vale de Santarém

Entroncamento-Alfarelos

Quintans-Válega.

Em curso (projecto e/ou obras) estão,

Alverca-Castanheira- Azambuja

Vale de Santarém-Entroncamento

Alfarelos-Quintans

Válega-Espinho-Vila Nova de Gaia.

Chega a ser chocante que a ligação Campanhã-Entrecampos tenha hoje o tempo de horário de 2.50, a somar aos atrasos constantes e apesar do efeito benéfico do Alfa! Quase o mesmo do Foguete há meio século e do comboio corail ou do Alfa não pendular há cerca de quatro décadas.

Como compreender que Cavaco Silva tenha aceitado uma tão radical mudança de política com a substituição do Ministro?

5 Em boa verdade Portugal não tem estado a criar um novo sistema de alta velocidade mas apenas a modernizar a rede do Século XIX.

As variantes à Linha do Norte nos troços Porto-Oiã e Oiã-Soure são isso mesmo, variantes que procuram uma solução para a interminável modernização numa linha cada dia mais congestionada. É isso que justifica a irreversível e grave opção por linha exclusiva de passageiros, além da bitola ibérica.

Quando o Eixo Atlântico em bitola europeia for construído entre Aveiro e Salamanca, repito o principal corredor das nossas ligações terrestres internacionais, ninguém sabe como se fará o acesso a Leixões e ao tecido económico, exportador e importador do Centro e do Norte.

Aliás nenhum País construiu o seu novo sistema de alta velocidade com esta originalidade. Não foi só a Espanha!

O Japão inaugurou o Shinkansen, com uma linha nova Tokio-Osaka, em 1964.

A Itália concebeu e foi construindo a diretíssima Roma-Florença, que concluiu quase em simultâneo com a nova linha francesa.

A França iniciou em 1981 a exploração da nova linha entre as duas maiores cidades Paris-Lyon.

A Alemanha em 1992 entre Wurzburg e Fulda.

Se o País estivesse interessado em construir o braço ocidental do Eixo Atlântico, beneficiando de financiamento comunitário apropriado, construí-lo-ia de uma só vez entre Lisboa e o Porto. Uma segunda família de comboios deveria permitir o enlace na capital da Região Centro e no NAL. Para uma outra família de comboios deveria haver by-pass para servirem também as cidades de Aveiro, Leiria e Santarém.

A linha que está em adiantado estado de construção entre Évora e Elvas ilustra também que se está a modernizar a rede do Século XIX e não um troço do futuro sistema de alta velocidade. Ela já estava prevista na RCM de Fevereiro de 88. A verdadeira linha de alta velocidade, do projecto de Sócrates, era em via dupla de bitola europeia e ao lado da que está em construção. De lamentar que não tenha sido feita a plataforma em via dupla, mas apenas as fundações dos pilares (como usual, por exemplo entre Poceirão e o Sul do Sado).

Um outro exemplo de que se está apenas a pensar na modernização da velha rede é ilustrado pelas obras de melhoramento do acesso ferroviário a Sines. Há muitas décadas que está prevista uma nova linha entre Poceirão e Sines. Em grande parte foi há muito já construída, incluindo a nova travessia do Sado. Falta o percurso Grândola Norte-Sines. Como este troço custaria 60 milhões de Euros e a modernização da velha linha de montanha Sines-Ermida, cuja utilização exige múltipla tração, 40 milhões de euros, optou-se por esta. Aparentemente uma boa opção, mas de vistas curtas. Se fosse tomada a primeira opção, assumida e trabalhada ao logo do tempo, não só um bom serviço de passageiros à região envolvente de Sines poderia ser assegurado, como estaria feita quase metade da futura ligação ao Algarve. Ligar o Algarve não é ligar Faro. Faro não tem a centralidade das outras capitais e muito menos uma centralidade radial. Ligar o Algarve é ligar o Barlavento, Faro e o Sotavento.

6 Em conclusão apelo ao Governo que assuma na realidade a construção progressiva de um novo sistema de alta velocidade que, para além da ligação Porto-Aeroporto Sá Carneiro-Vigo, dê prioridade ao Eixo Atlântico considerado de grande relevância pela UE, e tenha em conta o papel que pode ter a outra ligação internacional Faro-Huelva, também aprovada na Cimeira da Figueira da Foz.

Apelo em especial ao Senhor Primeiro Ministro que constitua uma Entidade independente capaz de, sob a orientação exclusiva do Governo e em diálogo com todo o tecido económico e social do País, sem esquecer os aeroportos e os portos, dar celeridade ao estudo e execução deste novo sistema de transportes.

Apelo também que seja retomada a Cimeira Ibérica da Figueira da Foz para que seja dada continuidade a um compromisso sério com Espanha que permita concretizar, nas melhores condições, as nossas ligações internacionais, sabendo-se à partida que há interesses contraditórios em presença.

Apelo em especial no sentido da obtenção consistente e substancial de financiamento europeu, infelizmente hoje sempre bem longe do vantajoso apoio conseguido ao longo de décadas por Espanha, e com a dificuldade acrescida pela competição de novos Membros da UE. Por exemplo está em marcha a construção de uma nova linha de alta velocidade e bitola europeia ligando a Polónia às três capitais dos Países Bálticos.

Apelo finalmente ao Governo que tenha em consideração que, na conceção da futura rede na Área Metropolitana de Lisboa, a Capital deve ser essencialmente um ponto de origem e de destino e não um ponto de passagem. E que o NAL deverá igualmente ser um ponto de origem e de destino da nova rede. Só a perfeita integração das duas infraestruturas será capaz de servir bem o futuro do País.

Nota – Tem-se chamado erradamente TGV ao eventual sistema português de alta velocidade. TGV é a designação do sistema francês. Os Japoneses chamaram-lhe BALA. Os Italianos TAV. Os Alemães ICE. Os Espanhóis AVE. Inspirados na denominação espanhola chamemos-lhe AVP (Alta Velocidade Portuguesa).