Contra quase todas as expectativas iniciais, Donald Trump ganhou as primárias republicanas e tornou-se o mais heterodoxo candidato presidencial do GOP desde há muitos anos. Uma vez dado esse passo, as expectativas e previsões apontavam quase em uníssono para um passeio fácil de Hillary Clinton até um triunfo eleitoral expressivo e inequívoco. A poucos dias das eleições presidenciais nos EUA, e uma vez mais contra quase todas as expectativas iniciais, Trump parece ter pelo menos algumas hipóteses reais de ser o próximos Presidente dos EUA.

Que um candidato tão unanimemente denunciado e desprezado pelo establishment político-mediático (incluindo segmentos importantes e influentes do próprio Partido Republicano) tenha conseguido chegar a esta situação é verdadeiramente extraordinário. O enorme ego de Donald Trump não o deixará ver as coisas assim em caso de derrota mas chegar a este ponto constitui já uma vitória independentemente do resultado das eleições. Uma vitória que, por muito que se possa não gostar de Trump, importará mais compreender do que condenar.

Compreender o caminho para a vitória de Trump só é possível se se perceber que a sua dinâmica de campanha desde o início das primárias republicanas assentou em alimentar-se do ódio contra ele dirigido. Trump foi extremamente hábil a converter a atenção mediática que lhe foi dada pelos seus múltiplos atacantes em dois activos preciosos: tempo de antena grátis na comunicação social e a construção de uma imagem de outsider, atacado por todos os lados por não alinhar com o sistema vigente.

Essa imagem é, em muitos aspectos, contra-natura para Trump. Afinal, ainda há poucos anos atrás Trump elogiava publicamente Bill e Hillary Clinton e fazia parte do respectivo círculo de amizades e influências. Uma proximidade aliás reflectida na amizade próxima que une Ivanka Trump e Chelsea Clinton. E pela sua própria actividade empresarial, Trump é desde há décadas muito mais um insider do que um outsider do sistema que denuncia. Mas até esse aspecto Trump conseguiu fazer reverter a seu favor sugerindo que conhece bem os vícios do sistema vigente porque os tem usado a seu favor ao longo dos anos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Ainda assim, a imagem e habilidade táctica de Trump de nada valeriam se não houvesse uma base popular de apoio receptiva à sua mensagem. Sobre esse aspecto, recomendo a análise de José Manuel Fernandes e, para quem tenha tempo para uma reflexão mais aprofundada, o livro de Charles Murray, Coming Apart: The State of White America, 1960-2010, publicado antes do fenómeno Trump mas que de alguma forma antecipa quase na perfeição a sua base sociológica.

A candidatura de Trump – mais ainda: o movimento popular e populista a ela associado – acaba por ser um veículo de múltiplas frustrações e revoltas. Desde vastos segmentos blue-collar que sentem ter ficado para trás com a globalização até pequenas faixas mais ideológicas como a nova direita revolucionária agregada na alt-right ou elementos associados ao paleo-conservadorismo que vêem no candidato um improvável némesis na sua cruzada de longa data contra o neoconservadorismo, Trump consegue ser coisas muito diferentes para grupos muito diferentes.

Perspectivando Trump como um pragmático (numa leitura simpática) ou como um oportunista (numa leitura menos simpática), as suas posições mais preocupantes são muito provavelmente as associadas à retórica proteccionista. Dada a importância da globalização para promover o desenvolvimento e retirar da pobreza e melhorar a vida de centenas de milhões de seres humanos, uma deriva proteccionista nos EUA constitui um enorme risco para a economia de todo o mundo.

Ainda assim, também neste aspecto Trump poderá ser mais sintoma do que causa. Afinal, Bernie Sanders quase ganhava as primárias democratas empregando uma retórica igualmente proteccionista e a própria Hillary Clinton inverteu posições anteriores passando agora a denunciar a NAFTA e a declarar a sua oposição ao TPP. Isto ao mesmo tempo que os chavões anti-globalização capitalizam também na Europa e unem sob a mesma bandeira, por exemplo, Marine Le Pen e a extrema-esquerda portuguesa.

Ao contrário do que muitos analistas previram de forma repetida (e não raras vezes arrogante), não creio que Hillary vá ter uma vitória esmagadora. As sondagens mais recentes apontam para que tudo está em aberto, ainda que com alguma vantagem para Clinton. O mais importante para os EUA – e para o mundo – é que o resultado das eleições seja aceite por todos independentemente de quem ganhe e que as sólidas instituições do país continuem a funcionar normalmente.

O sistema de checks and balances da Constituição dos EUA já deu no passado amplas provas de robustez e, neste contexto, não será porventura excessivamente optimista esperar que possa resistir a Trump e Hillary. Mas talvez o mais interessante nestas eleições seja constatar que uma candidata como Hillary (quase) só poderia ganhar tendo como adversário um candidato como Trump e que, por sua vez, um candidato como Trump (quase) só poderia ganhar tendo como adversária uma candidata como Hillary. Depois de oito anos de Obama e da retórica vazia de Hope and Change, é este o estado da política nos EUA.

Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa