O mais intrigante do ataque com armas químicas em Douma, cidade da região de Goutha Oriental, no Oeste da Síria, é a sua razão de ser. O regime de Bashar al-Assad nunca esteve tão perto de vencer a guerra contra os rebeldes desde que os confrontos se iniciaram há 7 anos. Por que razão decidiu então usar armas químicas nesta altura, sabendo tratar-se de uma acção que não deixaria, como não deixou, de ter sérias consequências?

É um mistério.

Como é difícil perceber a incapacidade da Federação Russa de impor contenção ao seu aliado, contenção essa que lhe cumpria assegurar. Isto, claro, tendo havido um ataque químico perpetrado pelo regime sírio, o que é desmentido por Assad, pelos russos e pelos iranianos.

Os aliados garantem ter provas irrefutáveis da responsabilidade do exército sírio, e referem testemunhas oculares, indicam horas exactas e até os locais onde as bombas com químicos foram largadas: às 16 horas locais do dia 7 de Abril, uma primeira leva caiu sobre a rua Omar Ibn Al-Khattab em Douma; às 19h30, uma segundo ataque com bombas de barril terá sido mais a leste, perto da Praça dos Mártires. Descrições do sofrimento das vítimas, com ênfase para as crianças, encheram de horror os nossos corações. A maior parte dos relatos provêm dos chamados “capacetes brancos” (membros da Defesa Civil Síria), do Centro de Documentação de Violações e dos hospitais onde as vítimas foram assistidas.

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Bashar al-Assad, a Rússia e o Irão negam a responsabilidade do governo sírio. Logo a 13 de Abril, o MNE Sergei Lavrov disse tratar-se de uma encenação, acusando um país que “está na primeira linha da campanha russofóbica” (suspeito que falava do Reino Unido).

Os peritos da Organização para a Proibição das Armas Químicas estão já em Damasco e aguardam autorização para ir a Douma aferir da existência de um ataque química a 7 de Abril e, verificando-se, que produtos terão sido usados (clorina e gás sarin, dizem fontes ocidentais). Devem iniciar o trabalho quarta-feira, mas o atraso fez aumentar as críticas a Assad – e aos russos – acusados de aproveitar o tempo para fazer desaparecer os indícios.

O mais provável, à luz da lógica e dos argumentos das partes, é ter havido um ataque do governo sírio. A resistência não parece ter recursos adequados e, ao longo dos anos, Bashar al-Assad já provou não ter escrúpulos em usar os recursos necessários, à custa, se for preciso, da sua própria população. Mas a farsa que foi o ataque ao Iraque em 2003, com o argumento das armas de destruição maciça a servir de pretexto para a invasão, e a deposição de Saddam Hussein, está presente na mente de todos, mesmo dos que juram a pés juntos acreditar nas provas amplamente referidas pelos responsáveis dos ataques retaliatórios de 14 de Abril.

E é por isso tão importante que seja estabelecida sem sombra de qualquer dúvida a responsabilidade do regime alauita nos ataques químicos do passado dia 7 de Abril.

A verdade é que a retaliação dos aliados ocidentais, resumidos aos Estados Unidos, Reino Unido e França, acabou por ser limitada. Um relatório da Casa Branca no rescaldo dos ataques dos aliados referiu que o governo sírio usa com frequência aramas químicas para compensar a sua falta de capacidade militar, deixando entender que esses ataques podem continuar, até que os custos para o regime ultrapassem as presumidas vantagens militares.

Outras interrogações persistem, apesar das aparentes certezas de tantos comentadores subitamente especialistas na problemática síria e medio-oriental. É um sinal dos tempos, da proliferação do conhecimento tipo Google, que torna dificil distinguir quem verdadeiramente conhece um tema, e vale a pena seguir, de quem se limita a ter opiniões vagas sobre quase tudo, com apoio da Internet – os chamados “tudólogos”. Ora no que toca à Síria, há mais dúvidas e interrogações do que certezas. Os ataques com mísseis do passado sábado não fizeram vítimas, parece, o que valida a ideia do aviso prévio às autoridades russas (pelo menos), que permitiu evitar a escalada do conflito para níveis perigosos. E é curioso o cuidado dos aliados ocidentais, ao garantir (agora) não quererem impor o fim do regime alauita, grupo étnico-religioso no poder que, tal como os xiitas, de que são uma variante ortodoxa e relativamente esotérica, veneram Ali, primo e genro de Maomé. Sendo pouco mais de 12% da população síria, os alauitas dominam as forças armadas e os serviços secretos, impondo-se à larga maioria sunita (mais de 74% dos sírios). Porque se contêm, então, os americanos (e os britânicos, e os franceses)? Porque parece pairar no Ocidente uma incomodidade (prudente) em relação aos ataques com mísseis?

Desde logo, ajudaria que não houvesse a percepção de que o ataque contra alvos sírios ligados à investigação e armazenamento de armas químicas serviu aos três líderes – Trump, May e Macron – para aliviar tensões internas. Ou talvez a presença de bases russas e a confusa mistura de interesses em conflito ajudem a explicar essa relutância. Ao pensar nesta crónica não resisti a fazer uma espécie de inventário desses protagonistas e desses interesses:

Sírios alauitas do partido Baath no poder e seus aliados russos e iranianos. Os rebeldes, divididos em dezenas de grupos distintos, quase todos sunitas, uma parte ligados à Al Qaeda, apoiados pelos EUA, a Arábia Saudita e em parte pelo Iraque. O Hezzbolah, instalado numa parcela de território sírio vizinho do Líbano. Milícias curdas, agora sob fogo do “aliado” (na Nato) turco. O daesh, claro, a ocupar cada vez menos terreno, ainda a palavra que queima a boca e assusta as almas. O exército iraniano, à espreita, a leste. Os israelitas, bem entendido. O resto do Mundo muçulmano, atento ao confronto entre as duas grandes denominações religiosas do Islão. A União Europeia e a sua propalada e sempre adiada política de defesa (não há dinheiro?). E a Turquia, com um pé na Europa e um olho na Rússia, sem falar em todos os outros interessados no conflito – China, os refugiados, os já referidos Estados Unidos.

Nesta realidade complexa, cheia de tensões geoestratégicas, não pode haver, não há certezas. E a prioridade deve ser dada às pessoas, vítimas inocentes dos quatro cantos do velho país dos Califas Omíadas, onde, a caminho de Damasco, viu São Paulo a luz (o Deus dos cristãos). Faz-me sempre confusão o alinhamento cego com as certezas de um ou de outro lado – Mal e  Bem – como se houvesse categorias morais definitivas em qualquer lugar da condição humana.

Na estrada para Damasco não há verdades absolutas nem donos da razão. E só um objectivo devia animar homens e mulheres de boa vontade: a Paz. O resto é o horror e o desumano. O ter razão e o ter razão. O triunfo supremo do egoísmo à custa do sofrimento alheio.