Exige-se ao Estado que seja responsável pela gestão eficiente e adequada dos recursos públicos, garantindo assim o bom funcionamento da sociedade. Tendo em consideração esta demanda, toda e qualquer dinâmica que implique ou reforce a capacidade de melhor gerir os dinheiros públicos, tendo em consideração as necessidades sentidas pelos cidadãos, é, sem dúvida, algo absolutamente fundamental.

A descentralização e consequente transferência de competências para os municípios poderá ser encarada como um momento verdadeiramente revolucionário e significativo da nossa democracia, com a intrínseca capacidade de poder vir a transformar e melhorar o modelo de organização e funcionamento do Estado, bem como cumprir o constante na Constituição da República Portuguesa, designadamente no que se refere ao consignado no artigo 267.º, no que toca a “evitar a burocratização, aproximar os serviços das populações e assegurar a participação dos interessados na sua gestão efectiva

Mas estarão as prerrogativas associadas às vantagens da descentralização espelhadas no que se tem vindo a engendrar na concreta efectivação deste processo?

Poderá auspiciar-se sucesso num processo desde sempre fustigado por adiamentos, protestos, confusões e incertezas várias?

Com inúmeros incumprimentos de prazos e consequentes prorrogações na sua aplicabilidade, o quadro inerente à transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais foi estabelecido pela Lei n.º 50/2018, de 16 de Agosto. A referida Lei determina a transferência de competências em diversos domínios, concretizando os princípios de subsidiariedade, descentralização administrativa e autonomia do poder local.

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Mas desde sempre que o enredo em torno da descentralização tem implicado discórdia e dúvidas várias acerca do seu concreto exercício, caracterizando-se por uma insatisfação notória por parte dos autarcas, provenientes de todos os quadrantes políticos.

Apesar de todo o processo de descentralização implicar um vasto leque de mudanças financeiras, humanas e organizacionais, a discussão associada parece resumir-se, quase exclusivamente, ao tamanho do envelope financeiro que vai ser dado às autarquias locais e à consequente adequação do mesmo às reais necessidades que estas irão passar a suprir.

Essa preocupação transversal dos autarcas é mais do que legítima, pois disso dependerá, sobremaneira, o conveniente e adequado exercício das competências transferidas, bem como o equilíbrio orçamental do poder local.

No entanto, o adequado tamanho do envelope financeiro a atribuir a cada autarquia local não será, de todo, a única e exclusiva condição que poderá vir a contribuir para o sucesso deste almejado processo de descentralização.

Os resultados inerentes às eleições autárquicas de 2021 exprimiram-se no maior número de mudanças em Câmaras Municipais de que há memória desde o ano de 2013, o que equivale a dizer que existe um número elevado de novos executivos camarários que, pelo facto de terem entrado recentemente em funções, tiveram pouco tempo para se familiarizarem com um desafio de tamanha complexidade técnica, política e financeira.

Urge que tenhamos consciência plena de que, independentemente das boas intenções associadas ao processo da descentralização e ao grande reforço da autonomia local que daí resultará, nem todas as autarquias, seja pelo anteriormente referido seja por outros motivos, terão efectivamente a capacidade de potenciar uma governação integrada e acessível às respectivas comunidades. Nem todas as autarquias conseguirão criar as condições necessárias para a melhoria dos serviços públicos. Nem todas as autarquias serão capazes de contribuir para a tão desejada coesão territorial, erradicando os vários fenómenos de desigualdade que teimam em grassar aqui e ali. E nem todas as autarquias o conseguirão operacionalizar, não porque não o queiram e não estejam com isso comprometidas, mas simplesmente porque muitas delas não têm executivos camarários capazes e com visão suficientemente abrangente e desempoeirada para prosseguir esse intento aos mais diversos níveis, ou porque, chegadas a esta altura, ainda não adaptaram os respectivos modelos de estrutura orgânica a contento, nem tão pouco organizaram os serviços municipais tendo em consideração o exercício das muitas competências que irão receber, sendo certo que com toda esta inércia e displicência irão facilmente desembocar numa situação de caos organizacional absoluto.

O processo inerente à descentralização não dispõe de receitas infalíveis, mas existem, por certo, linhas mestras de actuação com vista à definição e conveniente implementação de políticas municipais adequadas à sua operacionalização, linhas mestras que se não se forem traçadas não permitirão o exercício das referidas competências, o que implica dizer que não permitirão o desenvolvimento dos territórios, nem a promoção do bem-estar e qualidade de vida da população que tanto se deseja alcançar.