Li o artigo do sr. Presidente da República sobre aquilo que ele chama de “assimetrias”. Se calhar o próprio faria a mesma reflexão que faço aqui, para melhor. Mas achei que valia a pena pensar alto sobre o assunto sem ser aplicando verbos no infinitivo.

Imagine o meu caro que resolvo fazer um “filme de autor” e para tal me vão dar um subsídio de mil euros (valor arbitrário só para exemplificar). Se imaginou que será a maior porcaria de filme que viu na vida, deve ter imaginado bem porque a probabilidade de o ser é enorme. E é enorme porque eu não tenho o capital para o fazer. Nunca fiz um filme, não tive qualquer treino para o fazer, não fui educado nem nos princípios teóricos, nem nos práticos. Em termos muito básicos, os únicos recursos que teria para fazer o filme seria a minha vontade e mil euros. Não se faz um filme por mil euros? Nem isso eu sei.

Agora vamos melhorar a coisa. Em vez de mil euros, vou ter um subsídio de um milhão de euros. O que é que mudou? Bem, à partida nada. Simplesmente vou ter mais dinheiro, mas se não usar esse dinheiro para comprar os serviços de quem saiba realmente fazer cinema, o resultado será uma catástrofe idêntica àquela que resultaria com os mil euros e com a agravante de ter gasto mais dinheiro. Não ficámos com um filme de jeito, ninguém o vai ver, e não aprendi a fazer porque aquilo que não sabia, continuo sem saber.

Vamos olhar para os resultados dos vários pontos de vista e tentar arranjar alternativas. Do ponto de vista de quem me deu o subsídio, a coisa não poderia ter corrido pior. Foi aquilo que se chama popularmente de dinheiro deitado ao lixo, porque recebeu o mesmo e gastou mil vezes mais. Do meu ponto de vista, ganhei 999 mil euros “de borla” porque fiz a mesma coisa que faria com mil. A minha posição no mercado cinematográfico é a mesma que era antes, embora as minhas férias possam ser bastante mais confortáveis. Em alternativa a tudo isto, poderia ter usado o milhão de euros para contratar alguém que soubesse fazer filmes e, com isso, aprender a fazê-los. No fim teria um filme bom, embora feito por outra pessoa, e a minha posição seria diferente porque agora já tinha alguma experiência. O resultado final desta última alternativa seria um filme que produz receitas e um produtor, eu, que saberia fazer filmes que produzem receitas. Por outras palavras, aquilo que era simplesmente dinheiro, agora é muito mais importante: é capital. A diferença está no facto de na próxima vez que angariar um milhão de euros para fazer um filme, eu vou saber como o fazer gerar receitas em vez de simplesmente destruir dinheiro.

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Se recebesse um subsídio de mil euros por cada vez que neste país se cai na falácia de que dinheiro e capital são a mesma coisa, já tinha recebido muito mais de um milhão de euros. E, vamos assumir, somos mesmo um povo difícil de se convencer. Os mais novos não se lembram do tempo da chuva de subsídios europeus, mas de certeza já tiveram contacto com a frase “Se no tempo do Cavaco tivéssemos aproveitado o dinheiro…”. O que aconteceu foi que num país atrasadíssimo que éramos, a entrada na CEE (a antiga versão da UE) trouxe um esparrame de dinheiro a que os europeus chamavam de fundos de convergência e que se destinavam a fazer de Portugal um país europeu, parecido com os outros (ah, os sonhos…). E Portugal evoluiu muito, mas claro que essa quantidade enorme de dinheiro serviu para fazer a mesma coisa que uma fração dele serviria, tal como no caso do meu filme. O país não tinha o capital necessário para poder aproveitar todo esse dinheiro e muito se perdeu. Não porque fosse mal gerido, como tanta gente generaliza a partir de uns quantos casos fraudulentos, mas porque não era possível ser bem aproveitado. Outros países, nomeadamente os do leste europeu, já nos ultrapassaram há muito e com muito menos dinheiro para convergirem, porque os sistemas educativos desses países eram tão evoluídos como os europeus e, com muito menos dinheiro, souberam aproveitar a oportunidade.

Para ser mais evidente, com os relatos do mundial de futebol vêm os casos de taxistas matemáticos na Rússia, apresentados como uma curiosidade esdrúxula. É pena que esses relatos não transmitam a ideia de que é muito pior ter matemática feita por taxistas, como às vezes tenho a sensação de que é o nosso caso. O facto de a Rússia ter taxistas matemáticos revela um país com um capital enorme que espera aquela oportunidade que Portugal teve. Talvez na próxima subida do petróleo a oportunidade surja, ou numa eventual abertura democrática que leve ao fim dos embargos, e estejamos a dar notícias de como a Rússia em poucos anos se tornou uma potência económica. E, mais uma vez, fiquemos todos muito admirados como hoje ficamos com o caso da China ou da Eslovénia e encontremos todo o tipo de desculpa como “os chineses são muitos” ou “os israelitas e os irlandeses foram ajudados pelos americanos” e nos falte sempre uma justificação para as “Eslovénias” e “Dinamarcas”.

Hoje não focamos no “dinheiro desperdiçado no tempo do Cavaco”, mas ouvimos falar na quantidade de dinheiro que podíamos ir buscar à União Europeia e não vamos. Ainda por cima pagamos para essa “quantidade de dinheiro”. A causa é, obviamente, a nossa incapacidade de usar o dinheiro dos apoios europeus e que é revelada por essa diferença entre aquilo que poderíamos ir buscar e aquilo que de facto vamos buscar. Essa diferença é aquilo que seria deitado ao lixo se, por acaso, esse dinheiro nos fosse dado incondicionalmente. Tal como o milhão para o meu filme, aquilo que não sabemos fazer não é substituído por dinheiro, pelo que se recebêssemos de facto esse dinheiro teríamos que pagar a outro europeu qualquer para o vir fazer e o dinheiro voltava, por assim dizer, à origem, onde está o capital.

Acabamos a chorar a partida dos nossos filhos por irem trabalhar em locais mais apetecíveis e reclamamos dos governos que façam alguma coisa, mas continuamos a ignorar a mais simplória de todas as causas. Eles partem porque é melhor para eles. Ainda que gastássemos o dinheiro que temos, e não temos, para eles ficarem; eles, que são muito mais inteligentes que nós, partem para receber mais capital nos sítios onde vão contactar com sociedades dinâmicas, onde se constroem coisas novas, com mercados a funcionar e que vão fazer deles profissionais com inúmeras competências. Porque quando eles fazem as contas percebem perfeitamente que não vão ganhar muito mais, face ao incómodo que isso traz, mas que o que crescem em capital não tem comparação possível.

O que é verdadeiramente revoltante nesta história, como já devem ter chegado à conclusão por esta minha sanha de diferenciar capital de dinheiro, é que para formar capital não é preciso muito dinheiro. É só preciso fazer bem. Sim, também isso é uma forma de capital que nós, enquanto povo, devíamos ter muito e temos muito pouco. Mas há coisas relativamente básicas que até um povo com pouco capital como o nosso deveria entender. Por exemplo, educação, segurança e saúde só dependem de nós.

É da nossa vontade de fazer dos nossos filhos educados que começa a formação de capital, para que eles não façam filmes só porque querem, mas para que o façam com competências teóricas e práticas suficientes para que o filme que façam seja um filme que gera receitas para toda a sociedade. Nesse sentido, a notícia de que o ministério se prepara para reduzir em algumas centenas o número de turmas em contrato de associação, no meio de uma discussão de aumentos salariais para os professores empregados do estado, mostra uma determinação férrea de um estado – e logo de um povo – em não perceber a importância da formação de capital e na intenção óbvia de deitar dinheiro ao lixo. Insiste-se em centralizar a contratação e gestão dos recursos humanos no maior destruidor de dinheiro público da história, quando seria lógico que cada uma das escolas faria uma gestão da formação de capital muito mais eficiente. É demasiado evidente que a geração de capital do sistema estatal de educação português é a mesma há 40 anos e a quantidade de dinheiro que consome é muito maior. E, ainda assim, nós continuamos a achar isto normal. Nem o capital de achar isto estranho nós parecemos ter.

Assim, pensando bem, a ideia de me darem um milhão de euros para fazer um “filme de autor” não parece assim tão disparatada como parecia no início do texto. Pelo menos, não tão disparatada como meter um Ministério da Educação a gerir todas as escolas de um país, gastando milhares de milhões de euros, destruindo o pouco que funciona e promovendo aquilo que há 40 anos dá provas de que não funciona.

O Presidente da República, dizia há uns dias que “se não formos capazes, falhámos como país”. Receio que S. Exa. esteja a incorrer num ligeiro erro de paralaxe. É que, visto daqui o país ainda não falhou. Agora, a República, essa, ainda tem muito que andar para provar que serve para alguma coisa. Porque servir para destruir dinheiro, para isso tem um longo e cavado currículo.

(As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente o seu autor)
PhD em Física, Co-Fundador da Closer, Vice-Presidente da Data Science Portuguese Association