Para mim evitar andar de carro não é uma preferência; é evitar também não apostatar da pouca fé que tenho. Se for exposto a muita condução na cidade passarei a duvidar que haja salvação para um mundo destes. Olharei para as pessoas que se cruzarão comigo no trânsito como implacavelmente merecedoras do Inferno, bestas que são. E não serão apenas elas, bestas que são, que merecerão o Inferno—serei eu também. Andar de carro na cidade apenas prova que as chamas do Hades serão espirituais e físicas mesmo.

Tenho carta de condução há mais de duas décadas. Graças a Deus, nunca me magoei em nenhum acidente e nunca me envolvi em grandes brigas rodoviárias. Não há, portanto, um cadastro trágico que possa desenrolar e que justifique as conclusões teológicas e existenciais que me têm levado à determinação que partilhei de evitar andar de carro na cidade. Mas uma certeza tem crescido nestes mais de vinte anos e que me leva, sempre que posso, a preferir não pôr as mãos no volante: quando o faço, ganho um raio-x para as almas dos outros e para a minha.

Não sei se é do vidro pára-brisas mas vejo os espíritos dos outros e o meu quando nos cruzamos no trânsito. E são maus. São maus os espíritos dos outros e é mau o meu espírito. Consigo vislumbrar, sobre os nossos ombros, demónios diversos. Esses enviados malignos segredam-nos recomendações tenebrosas sem que nos apercebamos, e são especialmente bem sucedidos porque, julgando nós que ao conduzir fazemos algo intermédio como apenas ir do ponto A para o ponto B, acabamos fazendo uma coisa final que é encomendar a nossa alma às trevas. O trânsito é tanatológico.

Não ganhei nenhuma virtude desde que opto pelos transportes públicos. Mas só pelo facto de não assistir à endemonização progressiva e irremediável que o trânsito automóvel implica, ganho dias mais solares. Ao andar a pé agradeço a Deus pela manhã que recebo; ao apanhar o comboio ouço sermões pela internet que dão fibra à minha alma débil; ao calcorrear as ruas da cidade recito Salmos e outros textos bíblicos que me mostram que há um plano alternativo à degenerescência óbvia da nossa vida automobilizada. Não conduzir coloca-me em rota de resgate.

Tenho de confessar que há dias em que não consigo evitar a mortificação de conduzir. E lá vou eu, com o coração a palpitar mais forte no fraco peito que tenho, dilacerado por desejar a morte a todos os malditos que, como eu, confundem a tarefa de ir do ponto A para o ponto B por uma corrida pelas suas vidas. Claro que há modos de andar de carro que podem servir de dieta oposta, de apreciar ir do ponto A para o ponto B como uma simples e bela viagem. Nesse sentido, viajar de carro não tem nada a ver com andar de carro na cidade. Belas memórias tenho de belas viagens de carro.

Quero, por isso, sonhar com um mundo menos decadente só pelo facto de mais pessoas evitarem conduzir na cidade. As razões, como já viram, nem são de ordem propriamente ecológica. As razões são de ordem espiritual mesmo. Não conseguiremos evitar o Apocalipse por conduzirmos menos. Mas, tentando não andar tanto de carro, talvez recebamos a consumação de todas as coisas menos consumidos. E, guardemos a fé em certeza: não haverá trânsito na Nova Jerusalém.

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