Graça Freitas, directora-geral da Saúde, inquirida sobre a novidade da prescrição de vacinas pelos deputados da República, disse ter a “certeza absoluta” de que os deputados são “pessoas extremamente sensíveis” e evitarão, no futuro, “pôr em risco os critérios técnico-científicos, a evidência científica e as boas práticas médicas”. A directora-geral da Saúde foi inexcedivelmente educada. É óbvio para toda a gente que os senhores deputados já puseram em risco “os critérios técnico-científicos, a evidência científica e as boas práticas médicas”. Na verdade, pisotearam-nos. Pelo que a questão que se coloca agora é outra: fizeram-no por ignorância ou com dolo?

A hipótese da ignorância é pertinente: afinal, os senhores deputados decretam vacinas com o mesmo atrevimento e o mesmo desprezo pela evidência científica com que os movimentos anti-vacinas querem impedi-las. Já a hipótese do dolo nasce de um pormenor inverosímil: que o parlamento se tenha dado ao trabalho de ouvir a Apifarma sem que, ao mesmo tempo, considerasse necessário ou útil ouvir a DGS ou a Comissão Técnica de Vacinação, organismos públicos que habitualmente emitem pareceres nesta área. Neste passo em falso vêem alguns a evidência de escabrosas relações entre a indústria e o poder. Eu não sei. Não sou do ministério público nem romancista; e não vou portanto perder tempo com suposições infundadas. Mas teria, sem dúvida, ficado bem aos senhores deputados recordar que, à mulher de César, não basta ser honesta.

Há neste caso matéria para preocupações mais sérias. Se os deputados agora acharam natural escolher vacinas por decreto, não foi por súbita insanidade; é porque foram habituados a isso. Tradicionalmente, cabia ao parlamento decidir sobre tópicos que, sendo práticos, remetiam directamente para as políticas de saúde: as taxas moderadoras, por exemplo; ou os requisitos legais para realização de um aborto. Mas depois passou-se para a discussão de temas “fracturantes”, como saber que perguntas deviam ou não deviam ser feitas aos dadores de sangue; ou se as “medicinas alternativas” deviam integrar o Serviço Nacional de Saúde. A própria DGS, que agora se vê desautorizada, gosta de pedir aos deputados que legislem sobre o açúcar nas gasosas e outros temas de higiene. Enfim, não podemos esquecer a necessidade que tem havido amiúde de intervir sobre os efeitos práticos das cativações do ministro Centeno – temos o caso dos dois aceleradores aprovados desde 2014 para a radioterapia do IPO de Lisboa; ou a trapalhada das instalações da oncologia pediátrica do Hospital de S. João. Porque não vacinas no orçamento?

Uma nota final. Percebe-se que o BE e o PCP entendam que escolher vacinas é da competência dos políticos: faz parte da visão marxista do mundo que tudo é ideologia. É mais difícil compreender que o PSD participe nessa tolice. Excepto, lá está, por oportunismo. Péssimo.

Médico

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