Na história da literatura há provavelmente mais textos escritos que tratam a estupidez como estúpida, mas a excepção também existe—nem sempre a tolice tem de ser uma maldição. “O Elogio da Loucura” talvez seja daqueles exemplos mais imediatos quando, também para criticar a arrogância de um tipo de poder (neste caso, o religioso), Erasmo de Roterdão recomenda não sermos sábios o tempo todo. Só uma pessoa pouco inteligente toma a inteligência como uma chave que lhe abre todas as fechaduras da vida.

Nas linhas de Erasmo não fica complicado entender que, se fôssemos assim tão desprovidos de loucura, a sociedade como a conhecemos desapareceria. Como é que os amantes se amariam se não negligenciassem, mais activa ou passivamente, os lapsos uns dos outros? O mesmo se aplicaria à generalidade das amizades e de todas as relações significativas em que o segredo parece estar também nesse interessante cultivo de minimizar as incoerências lógicas das pessoas que consideramos. Fôssemos nós tão inteligentes como gostamos de nos julgar e a sociedade desabava num gargalhada cruel diante do absurdo constante da nossa tolice.

Num artigo de 2016 na revista Atlantic, David H. Freedman pegava no mesmo assunto de outra maneira. O texto chama-se “The War On Stupid People” e nele escrevia que, se comparássemos nos Estados Unidos a última década com a de 50 do século passado, concluiríamos que vivemos tempos difíceis para ser estúpido. Ou seja: antes ter um Q.I. mediano ou inferior não interferiria grandemente com uma existência recompensadora mas agora abriu a época de caça à estupidez: “As pessoas que mais facilmente se atiravam de uma ponte do que usariam um termo pejorativo para raça, religião, aparência física ou deficiência, não hesitam em chamar estúpido a alguém: de facto, depreciarmos abertamente os outros por serem “estúpidos” é um passo automático em quase todo o tipo de discussões.”

Ainda no mesmo texto, Freedman nota que a inteligência, além da crueldade, pode também não ser tão profissional assim: “o professor da Harvard Business School, Chris Argyris, sugere que as pessoas inteligentes podem dar os piores empregados, em parte porque não estão habituados a lidar com o fracasso ou com a crítica. Múltiplos estudos concluem que os recursos interpessoais, a auto-consciência, e outras qualidades “emocionais” prevêem melhor um desempenho profissional forte do que a inteligência convencional.” Ser demasiado esperto pode ser uma burrice.

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Mas gostava de adicionar ainda outra desvantagem à inteligência. Ser inteligente pode ser um verdadeiro cativeiro. Como assim? A minha resposta baseia-se numa amostra muito limitada que é a da minha experiência. Depois de argumentos de Harvard, já estão a ver o declínio argumentativo deste texto. Aceitem-no, ainda assim, sem a crueldade típica que vos pode ser tão natural, caso sejam inteligentes. O ponto do meu débil argumento, neste caso, é este: não há nada pior do que ter de provar a nossa inteligência aos outros.

Esperar o reconhecimento da nossa inteligência é uma forma de escravatura. O verdadeiro amor, que Erasmo sabia parte do manuseio da tolice e da esperteza, não desprezando as úteis funções do cérebro, não o coloca na vitrine da nossa admiração. É também por isso que Simone Weil dizia que, quando muito, a inteligência servia para terraplanar. Enquanto nos admiram a inteligência, não fazem assim tanto por nós.

Pode até dar-se o caso de definharmos quando vivemos para mostrar que pensamos bem. Colocamos de livre vontade uma corrente à volta do nosso pescoço. Atrelamo-nos às mãos de donos, feitos servis e em busca de festas de reconhecimento. Passamos eventualmente a ser educados a morder quem desafie esta relação de propriedade que a inteligência usa para nos subjugar—somos cãezinhos do Sr. Cérebro.

No meu caso, raramente estou tão mal como quando me empenho em defender a suposta inteligência que tenho. Torno-me racional no sentido de rasteiro, persuasivo no sentido de perverso, convincente no sentido de coercivo. As vitórias da inteligência são festivais violentos de acumulação de golpes e passamos a viver num ringue. Daí vindos, não há nada como ser estúpido. Não há alívio como o de desistirem da superioridade do nosso pensamento. Aí sim, talvez ganhemos pela primeira vez um novo olhar sobre as coisas, um horizonte que se expande quando mexemos o pescoço livre da coleira da inteligência.