O Chega está a dar algo em que acreditar a quem se sente explorado, esquecido, abandonado e desconsiderado, ainda que as suas soluções sejam intangíveis, fantasiosas, simplistas e insignificantes como eram as do PCP.

É sabido que a cultura política no nosso país é baixa, sequelas de circunstâncias históricas perpetuadas durante séculos, como o atraso, o analfabetismo, o fraco fomento da cultura, do espírito crítico, da liberdade de expressão, a repressão política, entre outros factores. Só este conjunto de circunstâncias abalou a dinâmica social do nosso país de uma forma tão significativa, que o nosso modo de viver, de pensar e de estar na sociedade é incomparável ao dos ingleses, ao dos suecos, ao dos franceses ou ao dos americanos, sociedades com uma cultura política e civilizacional muito mais viva, cujos modelos de sociedade não são de todo possíveis de aplicar em Portugal. Facto que devemos aceitar.

É mais fácil olharmos para dentro do nosso país, identificarmos falhas que consideramos graves e dizer “lá fora faz-se melhor”. O que é parcialmente verdade, mas também é parcialmente culpa do nosso típico complexo de inferioridade nacional que nos faz constantemente querer saber o que “os outros” pensam de nós para formularmos a opinião acerca de nós próprios. E quando formulamos essa opinião temos tendência para culparmos falanges do nosso povo daquilo que está mal, em vez de nos culparmos a nós, como um todo, como portugueses. A culpa é sempre dos outros, os “lá de Lisboa”, os “lá do Alentejo”, os “lá do Norte”, os “lá do Sul”, “os imigrantes” … E esta dinâmica social não só é um bloqueio ao progresso, como é muito perniciosa.

Nos próximos dias vamos ouvir que o fascismo está a ganhar fôlego no Alentejo e que os alentejanos são aquilo e aqueloutro. É o típico modo de pensar do Português, marginalizar os nossos semelhantes que manifestem posições que ameacem as nossas.

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Devo dizer, antes de prosseguir, que o meu apego ao Chega é zero, assim como ao PCP, mas ao Alentejo, aos alentejanos e à memória histórica da minha região, o meu apego é inexcedível, apaixonado, devoto e intensamente protector.

Há nas elites urbanas de Portugal, espalhadas pela faixa litoral entre Lisboa e Porto, um manifesto desdém para com as comunidades rurais, comunidades como aquela onde nasci, fui criado e vivi até aos 25 anos. Comunidades onde os benefícios da globalização não chegam, comunidades onde todas as crises chegam primeiro e acabam em último, comunidades onde grande parte das famílias chegam ao fim do mês com contas bancárias reduzidas aos dois dígitos todos os meses, onde o elevador social não dá oportunidade à esmagadora maioria, onde a esperança de ser alguém na vida depende mais da sorte que do trabalho, onde ver um filho tornar-se advogado, médico ou engenheiro é uma miragem longínqua e vê-lo tornar-se biscateiro, servente ou praça do exército é uma realidade mais imaginável.

Face a este cenário, aparecem as elites urbanas com o seu tom paternalista a dar as suas lições de como vingar na vida a estas pessoas, com soluções simples e directas para problemas completamente fora desse contexto e dessa realidade. Como que uma equipa de futebol de primeira divisão com um relvado tratado e liso a querer fazer com que uma equipa amadora jogue da mesma forma num campo pelado enlameado e cheio de buracos – não há como jogar da mesma forma. A realidade exige outras abordagens, outras soluções e enquanto não se jogar em campos minimamente semelhantes também nunca haverá oportunidades minimamente semelhantes e menos díspares. Logo, pedir que estas comunidades tenham mais esperança, mais auto-confiança e mais determinação não vai alisar o terreno em que estas pessoas têm que viver face ao terreno liso em que as comunidades urbanas pavimentaram o chão das suas vidas, chão esse, para o qual eu próprio tive que me mudar para ambicionar ser algo mais nesta vida. Porém, eu represento uma minoria, a minoria daqueles que, não obstante o amor que sentem pelas suas terras e pelas suas regiões, fazem o sacrifício de viver fora delas, pois lá não se governam social, intelectual ou financeiramente. A maioria decide ficar, que é o comportamento mais natural do ser humano, ficar junto da sua zona de conforto, nos sítios que definem a sua identidade, e, diga-se, que a maioria não dispõe dos instrumentos necessários para que possam ter esse tipo de mobilidade, pois os seus trabalhos não se fazem a partir de um escritório ou de um computador, têm lugar numa fábrica, numa herdade, num negócio regional, impondo limitações à sua geografia pessoal.

Essas limitações são brutalmente influenciadas pelas políticas nacionais, que são, em geral, feitas à medida das elites urbanas por elites urbanas, o que faz com que os efeitos positivos dessas políticas sejam pouco sentidos no país rural e que os negativos tenham grande efeito. Viver nestas comunidades é remar constantemente contra a maré, sentir que só os outros ganham com este sistema e que “nós”, por mais duro que trabalhemos, por mais competentes que sejamos, estamos eternamente condenados a ficar no fundo da pirâmide.

Estes sentimentos geram frustração, geram ressentimento e geram sentimentos de vingança que mais cedo ou mais tarde se manifestarão.

Esses sentimentos, hoje, estão extremados, porque estas comunidades sentem que o jogo está viciado contra eles, tal e qual como nos anos 70, onde o alentejano comum era vassalo de uma minoria de latifundiários que os explorava a seu belo prazer, maltratava e pagava miseravelmente, quando pagava. Também aí o jogo estava viciado.

Foi precisamente aí que apareceu o PCP com as suas ideias revolucionárias, que por mais intangíveis e fantasiosas (qual conto do vigário) que fossem, transmitiam uma esperança inabalável a quem já nem em Deus tinha esperança, de tanta miséria vivida. O Alentejo agarrou-se ao comunismo como se a sua vida dependesse disso, pois a alternativa não existia, a alternativa eram os outros, o “sistema opressor”.

É exactamente o que está a acontecer hoje com o Chega, um partido que traz ideias revolucionárias que por mais intangíveis e fantasiosas (qual conto do vigário) que sejam, transmitem a tal esperança inabalável de que a vida pode mudar para melhor e que é possível inverter o sistema viciado.

No fundo, ambos os partidos partilham dos mesmos objectivos. Persuadir estas pessoas e abusar do desespero destas comunidades para, no fim, conquistar o sistema, o poder e impor regimes autoritários, iliberais e anti-democráticos. Era esse o objectivo final do PCP e é esse o objectivo final do Chega, apregoar a liberdade e destruí-la, clamar pela justiça e viciá-la, alcançar o poder e capturá-lo.

Não há, infelizmente, soluções imediatas para esvaziar estes movimentos. Requer tempo, requer bagagem política, requer o aparecimento de esqueletos no armário a que se possam apontar dedos, mas requer, sobretudo, a criação de políticas que mudem de facto a vida destas comunidades para melhor, pois os alentejanos não são comunistas, nem fascistas, são uma comunidade que se sente ignorada, pobre, desempregada, sem oportunidades, farta do paternalismo e do desdém das comunidades urbanas e de políticas que pouco ou nenhum efeito surtem nas suas vidas, fartas de verem os seus modos de vida atacados e julgados como a caça ou as touradas. Como se já não bastasse o esquecimento veem também o seu quotidiano atacado. Não é factual nem justo chamar ignorante, intolerante ou deplorável a quem sente que todo um sistema lhe virou as costas e que ninguém se importa com os seus problemas – pessoas comuns, com vidas comuns, nossos familiares, nossos amigos e nossos vizinhos, Portugueses de bem como qualquer outro português comum de Lisboa, do Algarve ou de Trás os Montes.

Tenho visto e lido observações relativamente ao Alentejo e ao mundo rural de Norte a Sul, que são o total oposto de como se devem combater estes movimentos regressivos. Culpar os alentejanos e os transmontanos por votar no Chega, só beneficiará o Chega, pois o sentido de comunidade virá ao de cima e ao sentirem a sua comunidade atacada, os alentejanos e o país rural em geral unem-se quando sentem os ares da marginalização. E unir-se-ão do lado do Chega, pois passa a ser uma questão identitária, como nos anos 70, quando se uniram do lado do PCP, o lado errado da História, o lado que perdeu e perde sempre.

O das extremas.