Há dias, António Costa anunciou ter uma “identificação muito significativa” com Manuela Ferreira Leite. Surpresa? Nem por isso. Os elogios à ex-líder do PSD não são um acaso. No último ano, António Costa convidou António Capucho para a Convenção Nacional do PS (e viu-o ovacionado ao declarar o seu apoio eleitoral aos socialistas), partilhou em comentários televisivos as críticas de Pacheco Pereira ao governo, assistiu a debates parlamentares em que os seus deputados argumentaram com citações de Bagão Félix ou Ferreira Leite, e escutou Freitas do Amaral pôr-se ao lado do Syriza (e contra o governo português) na gestão política da situação grega. O que têm todas estas personalidades em comum? Estão na primeira linha das críticas ao governo e compõem um clube informal de ressentidos políticos que, oriundos do PSD e do CDS, não conseguem conviver com a sua perda de influência nos respectivos partidos. E António Costa tira proveito disso. Directamente ou indirectamente, todos têm sido um importante instrumento propagandístico do PS.

Primeiro, legitimando as críticas socialistas ao governo. Diz a regra que um argumento ou crítica é sempre mais convincente quando vem de dentro. Se a direita critica a direita, ou se a esquerda critica a esquerda, toda a gente ouve. Como um argumento de autoridade em que a origem partidária se substituiu ao título académico. É deste vício do debate político que estas figuras da direita se têm alimentado, repetindo críticas do PS, legitimando-as e oferecendo-lhes credibilidade. Quem seguiu os debates quinzenais, na Assembleia da República, constatou-o. Contra o primeiro-ministro, a esquerda esgrimiu inúmeras vezes as dúvidas de Ferreira Leite quanto à diminuição do desemprego, os anúncios apocalípticos de Pacheco Pereira, as críticas de Bagão Félix quanto aos cortes nas pensões. Verdadeiras ou falsas (é irrelevante para o caso), as suas sentenças tornaram-se um mero instrumento retórico. E é absolutamente notável como, de forma voluntária, todos aceitam de bom grado ser instrumentalizados e desempenhar este papel no actual quadro político. António Costa agradece.

Segundo, atraindo eleitorado. Critique-se ou não, os recentes elogios de António Costa a Ferreira Leite são um sintoma de lucidez: o líder socialista pretende apelar estrategicamente ao eleitorado que se posiciona ao centro, encostando o PS menos à esquerda do que muitos dos seus fervorosos apoiantes gostariam. Ferreira Leite, como outros, põe-se a jeito e Costa limita-se a aproveitar a oportunidade, apesar do cinismo. Dificilmente se apagará da memória a campanha eleitoral de 2009, durante a qual Ferreira Leite foi desconsiderada, de todas as formas e feitios, por muitos dos actuais notáveis do PS – falava-se então da “bruxa”, da “velha”, da “austera”, da “mulher do antigamente” ou, entre dentes, da “salazarista”. Mas também é verdade que, de 2009 para cá, algo mudou na visão política de Manuela Ferreira Leite. A sua disponibilidade para, gerindo silêncios e ambiguidades, se sujeitar à instrumentalização pelo PS é inquestionável.

Ora, por mais que se teorize acerca dos porquês, a segurança social ou os cortes nos salários, esta “identificação muito significativa” que ocupou as manchetes resume-se, concretamente, à partilha de um adversário comum – Passos Coelho. Entre Costa e Ferreira Leite, os motivos serão diferentes (políticos ou pessoais), assim como ambos terão propostas e soluções distintas. Mas este ponto inicial é, de facto, significativo. Na política, muito mais do que na vida, inimigo de meu inimigo meu amigo é. Pacheco Pereira, aliás, personifica esta máxima. Os restantes seguem-na.

Dito isto, e estratégias políticas à parte, o que sobra deste espectáculo é lamentável. A força do ódio e do ressentimento. As agendas pessoais. A menorização voluntária de figuras partidárias de grande relevo. O cinismo do aproveitamento político. O recurso sucessivo a argumentos de autoridade. E, no final, para quê? Afinal, quantos votos valem Capucho, Pacheco Pereira e Ferreira Leite ao PS? Se calhar, para nada. Se calhar, nenhum.

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