No dia em que se conta o maior número diário de novos casos de sempre de SARS-CoV-2 em Portugal e se levantam hospitais de campanha, foi o mesmo dia em que 27.500 espectadores assistem placidamente à Fórmula 1 em Portimão. Sem distanciamento. Sem responsabilidade individual e sentido cívico coletivo.

Que mensagem passamos com este tipo de contradições?

Hoje, os hospitais e restantes unidades de saúde, fustigados por esta avalanche pandémica, tentam localmente dar a resposta possível perante o número imparável de casos.

O silêncio e a ausência de medidas concretas e prementes com que nos deparamos, desde há várias semanas, atiram os profissionais de saúde para um desnorte e para a sensação de caminhada para um abismo sem fim. As unidades de saúde tentam, localmente, dar a resposta possível, com os meios de que dispõem, aos milhares de doentes que a elas recorrem. Contudo, tal não é suficiente para ombrear com a ausência de medidas mais abrangentes, que permitam travar esta onda de contágios há muito descontrolada.

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Se queremos evitar um confinamento geral, cientes dos graves e irreversíveis prejuízos humanos, económicos e sociais, então há muito tempo já deveríamos ter atuado. Que preço iremos pagar por esta inoperância? Como foi possível que muitos se tenham continuado a reunir em festas e jantares coletivos, achando sempre que a Covid-19 é um “problema que só acontece aos outros”, que “até pode ser pouco mais do que uma gripe”, que “a jovem idade traz consigo a proteção absoluta para os efeitos deste vírus”, ou até mesmo “que não existe”.

A História julgará no Futuro as consequências da gestão do Presente.

Este é o momento, perante a ameaça do caos, dos governantes ouvirem os apelos de quem está no terreno e concertarmos esforços. Quem só conhece a realidade da saúde a partir de um gabinete ou de uma conferência de imprensa, desconhece a dimensão do esforço humano e humanista que existe em cada profissional de saúde, que tenta fazer milagres com parcos recursos e sem diretrizes de atuação; do profissional de saúde que tenta consolar e dar esperança, mesmo quando se sente aterrado de medo e ciente do que estamos a deixar que aconteça; do profissional de saúde que tenta ter esperança no  futuro, quando os hospitais se esvaziam e se esgotam para dar resposta a um sem número de doentes… até à eminência de deixar de poder dar. Começar por ouvir quem está no terreno poderá ser importante na orientação de quem governa e decide.

A linha da frente do combate a esta pandemia não se esgota nas unidades de cuidados intensivos, nas enfermarias ou nos postos de colheitas de zaragatoas. A linha da frente do combate a esta pandemia começa por cada um de nós, individualmente, nas nossas casas e trabalhos, na nossa esfera de ação social. À semelhança de um comboio que se prepara para a travessia do deserto com lugares limitados, também a elasticidade dos serviços de saúde se esgota se nada fizermos para evitar a sua lotação completa.

A história julgará e não nos perdoará se não fizermos esforços coletivos, reais e consequentes, para tentar travar esta evolução catastrófica da pandemia em Portugal.

O comboio iniciou a sua travessia, mas quando esgotar a lotação, deixará de poder parar nas estações e acolher mais doentes Covid e não Covid.