Vamos ser todos substituídos por robots? Claro que não. Para explicar a coisa, vou-lhe pedir para medir o comprimento da costa portuguesa. Bem, assim sem mais nem menos é difícil. Para ‘ajudar’, dou-lhe um pau com exatamente um quilómetro de comprimento e o caríssimo leitor vai fazer o obséquio de se levantar da cadeira, ir até Vila Real de S. António e meter o pau no chão sucessivamente até à Praia da Foz do Minho e dar-me o número de vezes que teve que colocar o pau no chão. Esse é o número de quilómetros que tem. Tirando a trabalheira, é uma tarefa matematicamente simples, certo? Errado. Porque levou um pau com um quilómetro de comprimento e houve uma série de reentrâncias e pontas que não conseguiu medir. Chegou ali ao Forte de S. Julião da Barra e teve que meter o pau a cortar a praia de Carcavelos como se fosse uma reta e assim está errado.

Vou-lhe dar agora um pau com 500 metros para fazer a mesma medida. Claro que agora vai conseguir apanhar algumas das irregularidades, mas não todas porque o pau continua a ser demasiado grande. Pior, quando chegar ao fim, o comprimento que tem para me dar é muito maior do que quando o pau tinha um quilómetro. Ora, volte lá agora com um pau de 250 metros para ver se apanha aquelas irregularidades que não apanhava com o pau de 500 metros e vê que continua sem apanhar todas as irregularidades e o comprimento que lhe está a dar é cada vez maior. Na verdade, pode continuar a reduzir o tamanho da unidade que usa para medir, que vai continuar sem conseguir apanhar todas as irregularidades e o comprimento que lhe está a dar é crescente. Então já sabe qual é o comprimento da costa portuguesa. A resposta era mais simples do que pensava: a costa portuguesa tem um comprimento infinito.

Este exercício foi feito, no original, com a costa da Grã-Bretanha e foi idealizado pelo matemático franco-americano Benoit B. Mandelbrot, um daqueles génios disruptivos que salpicam a humanidade de década a década. E o exercício não termina aqui. Tentámos atrás medir com um objeto que é unidimensional, um pau (desprezamos a espessura do pau). E se medirmos a duas dimensões (uma área)? Vamos medir com um quadrado de um quilómetro quadrado. Quantas vezes conseguimos meter um quadrado na costa portuguesa? É um exercício pateta porque, por mais que queiramos, a costa portuguesa é mesmo uma linha e não uma área, pelo que conseguimos lá meter zero quadrados. Ou seja, se medirmos a uma dimensão, dá-nos infinito; se medirmos a duas dimensões dá-nos zero. E é aqui que o génio de Mandelbrot aparece, é “óbvio” que a costa portuguesa só pode ser medida em dimensões maiores que uma e menores que duas. Ou seja, um número com decimais!

Quando Mandelbrot publicou, em 1967, o artigo “How Long Is the Coast of Britain? Statistical Self-Similarity and Fractional Dimension” na “Science”, referindo-se também à fronteira portuguesa, quis dar um enquadramento mais popular a algo que ele já tinha observado anteriormente na análise do comportamento do preço do algodão (coisa importante nos EUA) e que mais tarde batizou como “geometria fractal”. A palavra significa que podemos “fazer o zoom” que quisermos que o sistema parece todo igual (diz-se auto-similar).

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Há um único caso em que o resultado vai ficando cada vez mais rigoroso, isto é, em que conforme vamos baixando a escala, o valor vai convergindo para a medida correta. O que acontece neste caso particular é que temos alguma regularidade nas irregularidades, os altos compensam os baixos e, conforme vamos descendo na escala, essa compensação vai-se fazendo. Isto acontece quando um sistema físico está em equilíbrio e estas irregularidades são perfeitamente aleatórias. Tão aleatórias que, em média, a irregularidade é zero.

E porque raio trago este tema para aqui? Porque nos últimos tempos tenho observado alguma preocupação com a forma como o desenvolvimento das tecnologias de aprendizagem mecânica (ou inteligência artificial ou aquilo que quiserem chamar) vai impactar no desemprego futuro. As preocupações são lícitas e justificáveis, mas espero que no fim deste texto concorde comigo que há algum exagero e, até, que há muito mais falta de seres humanos para trabalhar do que postos de trabalho para máquinas. E, se possível, ao concordar comigo, vai chamar exagerados aos catastrofistas que reclamam impostos sobre máquinas.

E o exercício do comprimento da costa é excelente para começar. Como o leitor deve imaginar, hoje meter um computador a medir o comprimento da costa com base em imagens de satélite é uma coisa que podemos meter no grau de dificuldade ‘caca’. Então, em vez de o mandar a si medir a costa, vamos mandar um computador. Mas o resultado vai ser o mesmo. Mais rápido, é verdade, mas tão inconclusivo como era. Porquê? Porque tirando aquele caso de completa aleatoriedade nas irregularidades, o problema da medição da costa não cumpre com os requisitos matemáticos para aquilo que, no estado atual do conhecimento e da tecnologia, é aceite como ‘aprendível’. Em todos os outros casos, quanto mais rigorosos somos, quanto mais medidas fazemos, maior é o erro porque maior nos vai dar o resultado da medida.

Claro que para nós isto é completamente contraintuitivo. Mas não sabemos mais quando temos mais dados? Pois, tirando aquele caso particular da irregularidade completamente aleatória, isso não é inteiramente verdade. E, já agora, o caso particular não é assim tão incomum e daí algumas das preocupações relativamente ao desemprego serem justificáveis. Este caso é o caso do chamado ‘equilíbrio físico’. Este conceito de equilíbrio (o único que deveria ter este nome) está associado a ‘o número de resultados possíveis não se altera’ e todos os problema deste tipo são caracterizados por essa invariância no número de resultados possíveis. Porque é que podemos meter um computador a ganhar um jogo de xadrez? Porque o número de combinações possíveis de configurações de peças no tabuleiro, sendo enorme, não muda no tempo a não ser que alguém comece a ressuscitar peões comidos à revelia das regras. Tal como os cenários que um condutor de um automóvel tem pela frente. Conduzir um carro não é assim tão complexo, se excluirmos o gritar impropérios ao do lado. Ou as cores que conseguimos ver. É um pouco por isso que nos últimos tempos nos temos impressionado com feitos relacionados com a aprendizagem mecânica que não julgávamos possíveis.

Sim, nas tarefas repetitivas, aquelas cujo número de resultados possíveis não se altera, a inteligência artificial é tão boa como a humana. E mais eficiente, porque consigo usar uma capacidade quase infinita de repetir a mesma tarefa sem a máquina se cansar. Portanto, neste tipo de tarefa é indiscutível que o desemprego vai crescer. No entanto, sejamos mais inteligentes que isto. Neste caso, estamos a falar da utilização de robots numa tarefa humana ou de humanos numa tarefa de robots? Nos primórdios do fabrico em série, em que a utilização de braços mecânicos era diminuta, a preocupação era com a robotização dos seres humanos, não com a humanização dos robots. Por isso, na minha humilde opinião, não acho que o dia de hoje seja diferente do de ontem, nesse aspeto. O que difere será a quantidade de coisas que não pensávamos ser de execução tão pouco inteligente, sendo a condução de um veículo automóvel um bom exemplo, onde se ganha ainda no número de altercações no meio da estrada. Embora, claro, se possa já programar um robot que grita insultos aleatoriamente em defesa da tradição lusa.

Mas, espere lá, eu consigo saber o comprimento da costa portuguesa se me apetecer. É óbvio que consigo. Basta-me usar aquilo que as máquinas não têm e que ainda não conseguimos definir muito bem porque nem desenvolvemos matemática para isso. Basta-me usar a verdadeira inteligência. A impossibilidade matemática de atingir um valor numérico em nada vai influenciar a minha capacidade de entender e abstrair a geometria da costa portuguesa conforme aquilo em que eu a precise usar. E é aqui que devemos encarar tudo isto com a normalidade de todas as fases de todo o desenvolvimento humano. Mais do que a ameaça da automatização, o que vem aí é a oportunidade da inteligência. Repare-se que, daquilo que leu acima, eu só lhe dei duas hipóteses. Ou sei tudo e o robot vai fazer, ou não sei nada. Não é verdade, a inteligência humana trata o que falta entre este ‘tudo’ e este ‘nada’. É a forma como intuímos os resultados, os adaptamos à situação em concreto e os eliminamos dos detalhes, que diferencia um caso que não sabemos de outro que já conhecemos, que nos tem trazido do tempo das cavernas até hoje sem que o contorno da costa portuguesa tenha mudado assim tanto. Por isso, o ser humano sabe lidar com dados cujo erro aumenta com a quantidade e não será substituído nessas tarefas.

Do ponto de vista matemático, o melhor que hoje sabemos fazer é evitar o crescimento do erro limitando o fluxo dos dados. Mas isto traz-nos mais conhecimento? Nuns casos, sim; noutros, não. Mais uma vez é a inteligência humana que o determina. E estamos tão longe de matematizar esta parte do raciocínio que nem sabemos se algum dia será possível chegar a essa matemática e, consequentemente, a ‘esse programa de computador’. É por isso que temos milhares de pessoas a analisar dados e, com a sua inteligência, decidir os casos que sim e os casos que não. E outras centenas, como eu, que andam a desenvolver teorias para resolver alguns, não todos, destes problemas ainda sem sabermos se chegaremos a algum lado.

Em resposta aos catastrofistas, peguemos no exemplo de outro sistema cuja geometria é fractal: a economia. No caso dos sistemas económicos, nenhum período da história foi tão generoso na produção de dados como aquele que hoje vivemos. Se a economia fosse um sistema em que se gera equilíbrio, os primeiros a ir para o desemprego seriam os próprios economistas porque tudo seria tão repetitivo que a sua utilidade se iria reduzindo à medida que a quantidade de dados crescia. Claro que também podemos questionar se o sistema é fractal então porque é que os economistas (não todos, felizmente) insistem em tratá-lo como repetitivo, mas vamos deixar essa questão para outra altura. A verdade é que se tivermos um robot que repita números aleatórios para as previsões orçamentais, podemos reduzir substancialmente os custos públicos nesta matéria.

(As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente o seu autor)

PhD em Física, Co-Fundador da Closer, Vice-Presidente da Data Science Portuguese Association