O Notário é um órgão próprio da função notarial, sendo considerado também o agente máximo da função notarial. O conceito de notário divide-se em três partes: o notário latino; o notário anglo-saxónico e o notário administrativo. É precisamente a noção de notário latino que nos interessa neste escrito, porque é aquela que integra o nosso sistema notarial português. Vários autores1 consideram que o notário latino se insere no mais belo dos sistemas notariais, realçando o facto de ser o único e verdadeiro notário que cumpre a sua verdadeira função notarial. Hoje, a União Internacional do Notariado Latino apresenta aproximadamente cento e vinte países, correspondendo no total a dois terços da população mundial2.

No nosso ordenamento jurídico, o notário é classificado como oficial público e profissional do direito, sendo a função notarial representada em bom rigor como função pública e função privada. O conceito de notário, para ser fixado corretamente, diz-se que é separado da função notarial e certamente que se estudará também a própria função notarial que é inerente a princípios marcantes de toda a atividade notarial, entre os quais revelam o reconhecimento de fé pública aos atos praticados pelo notário.

Defendemos que a fé pública é um princípio da atividade notarial, para além de representar uma finalidade ou objetivo da mesma, como consagra o art. 1.º, n.º 1 do Código do Notariado (CN), ao lado dos mais conhecidos princípios elencados no art. 10.º do CN: legalidade, autonomia, imparcialidade, exclusividade e livre escolha e por isso a fé pública devia constar neste artigo legal. Como bem se sabe, a noção de fé pública remete-nos, desde logo, para o exposto no art. 363.º, n.º 2 do Código Civil (CC) – aos factos percecionados e confirmados pelo notário e aos documentos por si elaborados ou atestados é lhes atribuída autenticidade e imediatamente fé pública. A autenticidade assume a qualidade de verdade inigualável, de garantia de origem que não pode ser contestada3, Uma verdade incontestável assume sempre garantias de certeza e segurança jurídica, porque traduz a mais pura das veracidades, a segurança de que o instrumento notarial é fidedigno e a certeza do conteúdo no interior do ato notarial.

Ora, a definição explícita no I Congresso Internacional do Notariado I que ocorreu em Buenos Aires em 1948 expressa a divisão classificatória do notário como oficial público e profissional liberal e diz-nos exatamente o seguinte: considera-se o notário como oficial público e profissional do direito, encarregado de receber, interpretar e dar forma legal à vontade das partes, redigindo os instrumentos adequados a esse fim e conferindo-lhes a autenticidade de conservar os originais e expedir fotocópias do seu conteúdo. Podemos afirmar que a concepção de notário apresenta, já em 1948 e em semelhança com a atualidade, rigorosamente a classificação indivisível da função pública à função privada. Esta noção continua atual e realça o princípio da preservação e arquivamento dos atos notariais4.

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Dentro da noção de notário podemos elaborar um conceito inovador: o notário é o bom ouvinte da vontade real das partes, procurando exprimir no seu escrito essa vontade com rigor, por isso tem fé pública extrajudicial e usa-a na atribuição da autenticidade ao documento, cuja autoria lhe pertence, pautando-se pela certeza e segurança jurídica na feitura dos documentos que gozam de força probatória plena, só podendo ser sindicados pelo tribunal. O notário exprime a anti conflitualidade, por isso é bom assessor jurídico na causa, procurando preservar a segurança jurídica preventiva que se refere a esta anti litigiosidade.

A função pública percebe-se através destas noções que corresponde seguramente à autenticidade dos documentos, assegurando o seu arquivamento, à fixação de preços máximos relativos aos honorários definidos por portaria, ao estabelecimento do princípio do numerus clausus, do concurso de provas públicas para a atribuição do título de notário, ao dever de prestar juramento no ato da tomada de posse como notário, à fiscalização e disciplina da atividade notarial pelo Ministério da Justiça, ao facto de não poder recusar o serviço a qualquer pessoa, visto que o cartório é uma repartição pública e a função privada ligada à independência e à imparcialidade, devendo apenas obediência à lei e à vontade das partes, e, também, à livre escolha dos interessados, considerando-se incindível estas duas funções, conforme expõe o art. 3º, n.º1 do EN. A fé pública notarial extrajudicial é extremamente importante, estando ligada ao conceito de oficial público. Diz-se que a fé pública tem um duplo conteúdo, na esfera dos factos, a certeza dos factos que o notário vê, ouve ou percebe pelos seus sentidos; e a autenticidade da vontade das partes e a prova plena no documento público, segundo a lei5. Assim, o notário exerce uma função pública inerente ao documento que é público e respetiva autenticidade que corresponde às questões de facto e de direito. Por sua vez, como profissional do direito, assessora os interessados, através do conselho e assistência aos meios mais adequados aos seus fins.

É bom realçar que a função pública remete para o documento propriamente dito e para a autenticidade que confere às questões de facto e de direito. Já o dever de informação, o conselho e a assistência e a assessoria jurídica propriamente dita fazem parte de um controlo notarial positivo e refletem a função privada que é também uma função conformadora da vontade das partes, onde o notário acaba por ser sujeito a uma interpretação rígida e sólida sobre o alcance da vontade das partes, atribuindo forma legal à vontade das partes e a garantia da certeza jurídica do conteúdo documental. Logo, se a função pública remete para o conteúdo do documento, a função privada aponta para o conteúdo do negócio jurídico6. Consideramos que ambas as funções são necessárias, para que juntas possam definir o que é ser notário latino e o que faz o notário latino, uma vez que apenas na união das duas se enaltece a figura do notário e a própria atividade notarial. A profissão liberal de notário não se confunde com a do advogado ou solicitador, dado que não existe a vertente pública da sua função, mas tal não significa que os notários sejam considerados funcionários públicos, porque não o são nem podem ser num sistema de organização como o latino.

O notário é um jurista distinto de outros profissionais, porque aplica a lei em primeiro lugar, interpretando-a, quando não existe doutrina nacional ou jurisprudência para a situação jurídica concreta. Por isso, esta profissão enquadra-se numa profissão rígida e sólida aos parâmetros legais que se aplicam. Como jurista que é, preenche as lacunas da lei existentes.

O notário é o conformista da vontade real das partes, que ouve, que escuta e que percebe através dos seus sentidos essa vontade real, vertendo-a no seu escrito. O notário é o bom ouvinte e o bom criador dessa vontade que zela, que se move e que se enquadra na mais pura da atividade notarial. O notário é latino ou não é notário, pelas caraterísticas inerentes fortes a este sistema de organização notarial.

Estas são as razões determinantes que explicam o conceito do notário latino.

1 Neste sentido, Soares, Carla – Contra-Reforma do Notariado e dos Registos: um erro conceptual. Coimbra: Almedina, 2009. De acordo com a autora, o sistema do notariado latino é aquele que integra o nosso país correspondendo ao “único e verdadeiro sistema, o único e verdadeiro notariado”. P. 33. Segundo Pedro Rodrigues, o notário latino é o “único e verdadeiro notário – e da respetiva função, p. 26. Neste sentido, Rodrigues, Pedro – Direito Notarial e Direito Registal: O novo regime jurídico do notariado privado. Coimbra: Almedina, 2005, p. 26. Neste sentido, Pereira, M. Gonçalves – “Notários ou funcionários públicos?”, in Revista do Notariado, ano X, n.º 37, janeiro-abril (1990/1), “o notariado ou é latino ou não é notariado”, p. 6.

2 Esta informação é consultável no sítio eletrónico da União Internacioal do Notariado Latino. Disponível em https://www.uinl.org/.

3 Deckers, Eric – Função notarial e deontologia. Coimbra: Almedina, 2005, p. 37.

4 Gonçalves, Mercília – O Notário e a Atividade Notarial: Certeza e Segurança Jurídica. Tese de Mestrado, 2022.

5 Jardim, Mónica – Escritos de Direito Notarial e Direito Registal. Coimbra: Almedina, 2017, p. 27.

6 Soares, Carla – Contra-Reforma do Notariado e dos Registos: um erro conceptual. Coimbra: Almedina, 2009, p. 38.