Este último 1º de Maio serviu pelo menos para mostrar a debilidade da nossa elite política e para nos lembrar o estatuto excepcional que o PC se atribui a si mesmo no regime. Porventura com uma intenção prática (a de lavar as mãos, não no sentido dos conselhos da DGS, mas no sentido de um romano muito conhecido), Marcelo, o presidente, confessou que tinha ficado desiludido por a “festa dos trabalhadores” não se ter realizado com a singeleza que uma comemoração governada por uma “ideia simbólica” devia impor. António Costa, por sua vez, demonstrou que lhe interessam mais ideias abertamente práticas, nomeadamente dar um rebuçado ao PC para ver se a célebre “rua comunista” não se manifesta demasiado mal as regras que nos apertam se afrouxarem um bocado, com o país em cacos. Marta Temido, é de supor, obedece a uma ideia musical: o prazer de poder ouvir de novo o hino da CGTP (“Unidade Unidade Unidade / No Trabalho contra o Capital”), que um dia confessou lhe trazer grande paz de espírito, vá lá Deus saber como e porquê. E o PCP resolveu aproveitar para mostrar que se coloca num plano diferente do de todos os outros partidos, gozando de uma legitimidade superior que lhe dispensa obedecer às regras que ao comum dos cidadãos são impostas. Face a isto tudo, uma pessoa pergunta-se como é que viveram esta situação, em pleno “estado de emergência”, os patrões e os trabalhadores que ficaram sem empresas, lojas, cafés, restaurantes, isto é, que vivem uma verdadeira calamidade? Por acaso, até tenho uma ideia, mas é melhor não a dizer, não vá ela passar por manifestação de terrível populismo.

Em contrapartida, não há risco algum em expor uma pequena dúvida semântica, que já vi, de resto, ser partilhada por outros. Porque é que ao “estado de emergência” se sucede, como uma sua atenuação, o “estado de calamidade”? É que, para o comum dos mortais, uma “calamidade” é pior que uma “emergência”. Numa emergência, ainda vamos tendo um tempinho para deliberar e decidir como agir. Face a uma calamidade é aguentar, enterrar os mortos e cuidar dos vivos. Não é por acaso que Abelardo intitulou o seu escrito autobiográfico História das minhas calamidades. E Deus sabe como o título é apropriado, dada a bem conhecida calamidade que lhe aconteceu às mãos de Fulberto. Emergências, excelentes emergências, tinha-as, antes da calamidade, com Heloísa. “A nossa paixão atravessou todas as fases e graus do amor, e se algo de insólito a paixão pode ainda imaginar, nós até o acrescentámos.“ Depois da calamidade, Abelardo só podia sonhar com emergências.

Mas é verdade que novos sentidos se atribuem às palavras, quer dizer: o mundo muda. Lacerda Sales, secretário de Estado da Saúde e filósofo espontâneo, lembrou a Marcelo, por causa da “ideia simbólica”, que “cada vez que pestanejamos a nossa realidade muda”. O que significa que, segundo cálculos científicos, a realidade muda, em média, 12.000 vezes por dia. Um grande filósofo e admirável escritor dizia que nos seus escritos não pintava o ser, pintava a passagem, a permanente mutação do mundo e do eu. O ser, como algo de fixo, não nos era capturável. O seu discípulo Lacerda Sales não conseguiu, no entanto, resolver um problema teórico importante. O mestre julgava um inútil erro perder muito tempo a adivinhar o futuro, dada a extrema contingência de tudo. O discípulo, em contrapartida, não nos explica é como é que, com tanta incerteza, o governo pôde, como ele declarou (sem pestanejar, é caso para dizer) ao Observer, preparar a reacção à nossa pandemia já em finais de Janeiro. Teremos talvez no futuro resposta a esta aparente contradição. Por mim, vou estar atento. O problema é fascinante.

Por muito que a aparente incoerência fique absolvida pela permanente mutabilidade de tudo, a verdade é que a incoerência ainda é vista como um defeito de carácter ou, pelo menos, como sinal de uma certa dificuldade em encadear raciocínios, em manter alguma unidade no nosso sistema de crenças. Por isso não é de estranhar mais umas recentes críticas à atitude do presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues. Com efeito, não havia ele manifestado no dia 22 de Abril, em entrevista à Rádio Renascença, a sua visceral repulsa pela simples ideia de os deputados comemorarem “mascarados” o 25 de Abril na AR? E não decretou ele, há poucos dias, que a partir desta última segunda-feira o uso de máscaras seria obrigatório na Assembleia? Não haverá aqui uma contradição insanável? Sejamos prudentes no juízo e recorramos aos melhores instrumentos teóricos de que dispomos, em particular a doutrina Sales. Lembremos que para este o nosso mundo muda 12.000 vezes por dia. Ora, tendo em conta a fisiologia humana, o que se pode concluir é que Ferro demonstra até uma apreciável coerência. Entre 22 de Abril, data em que manifestou a sua detestação pelos “mascarados”, e segunda-feira passada, o mundo mudou 260.000 vezes. E, prodígio dos prodígios, ele apenas uma. Tal coerência é, não hesitemos em usar a palavra, admirável e apenas possível por uma excepcional dose de confinamento intelectual, suponho que metodológico e não natural e espontâneo.

De resto, esse confinamento intelectual não é propriedade exclusiva sua, nem uma mera demonstração do “novo normal”, como agora se diz. Há um “velho normal” que esteve sempre connosco e que exemplifica o confinamento intelectual em todo o seu esplendor. Refiro-me à língua de pau do PCP. Ela dá-se a ver, por exemplo, no texto que Jerónimo de Sousa dedicou aos 150 anos do nascimento de Lénine, o inventor do totalitarismo na Europa, que, para Jerónimo, é um génio, um “grande intelectual, filósofo, economista e dirigente político de expressão mundial”. Todo o texto é um repositório de fórmulas mágicas, destinadas a persuadir os crentes da coincidência da sua produção delirante com a realidade empírica, cuja análise releva, do princípio ao fim, da teratologia. O que é que assusta, mesmo que nos faça rir, na língua de pau comunista? É a certeza de que quem assim invariavelmente usa a linguagem é colectivamente capaz de tudo. A língua deixa de ser um meio para pensar e torna-se num conveniente procedimento mecânico para não pensar, martelando certezas que abafam, pelo seu barulho, quaisquer dúvidas. O confinamento intelectual atinge o máximo, numa espécie de solipsismo colectivo. Jerónimo acaba o seu texto declarando: “Sim, fomos, somos e seremos comunistas, seguindo na esteira de Lénine!”. Nada a objectar. Os comunistas são, de facto, um acabado produto do leninismo. O confinamento intelectual extremo pode bem ser a raiz da mais abjecta vontade do poder absoluto. Lutero dizia que a solidão leva os homens aos pensamentos mais terríveis. O solipsismo colectivo multiplica incontavelmente o terror.

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