Há qualquer coisa nas conservas que atrai a atenção, e que a recompensa. As conservas são as de lata mas também compotas, marmeladas, licores, chutneys e pickles; até, em sentido muito lato, o vinho. Partilham todas entre si a aparência comum de um cofre e de uma montra; o conteúdo assemelha-se a peixes em aquários, ou a pessoas dentro de casas com as cortinas corridas. As conservas são difíceis de abrir; e o que está lá dentro é difícil de ver.

Naturalmente há bons motivos para conservar alimentos; são os comuns, e são os conhecidos. Poderá parecer que as conservas são elas próprias um estado obsoleto da história da conservação, que hoje terá atingido maior esplendor com o frigorífico e a arca congeladora. As conservas serão os antepassados directos de ambos; mas coexistem ainda com eles, e de certa maneira sobreviveram à sua invenção. São como certos parentes mais longevos que nos lembram constantemente de que não somos edições melhoradas dos nossos antepassados.

Apesar de o frigorífico ser um cofre, e a arca uma arca, ambos dão um acesso aos seus conteúdos que é desconcertante. Entre nós e as conservas há geralmente pelo contrário uma muralha de processos de abertura; são requeridos instrumentos que servem para despachar latas, garrafas e frascos; e um esforço intenso que exercemos diante de terceiros com o vergonha de um arrombador.

Muito importantes nas conservas são as soluções em que as coisas são conservadas. Há as que se parecem com água mas que não se podem beber, o azeite, o vinagre e os vários xaropes; há o álcool. Alteram aquilo que se conserva, e tudo o que se conserva está alterado. A maior parte dessas coisas nós conhecemos de outras paragens; mas conhecemo-las sob um aspecto diferente, por uma cor diferente, e com um gosto diferente. Os morangos do doce são praticamente uma outra espécie, parecida com as esponjas e com as algas; as sardinhas da lata são uma variedade de sardinha não-assável; o vinho não sabe a uvas.

Há aliás uma autonomia ladina em vários produtos conservados que não encoraja que os comparemos com os seus primos frescos: onde estão as líchias, ou as alcaparras, ou as anchovas de que derivariam as respectivas conservas? Em vastos tractos do mundo as líchias nascem em árvores de xarope, e as alcaparras são órgãos externos de anchovas que nadam em oceanos de azeite; sem falar do mineral a que se chama em Portugal bacalhau. São espécies extintas que não conseguimos imaginar em fresco, e que nos aparecem quase sempre como fósseis; são as que nos dizem mais sobre o que é realmente uma conserva. O motivo da conservação poderá ser trivial: mas a esperança de todos os conservadores genuínos é fazer os outros estimar as coisas que não existem em fresco, as coisas que só nos chegam em conserva.

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