Habituámo-nos de tal modo ao irregular funcionamento das nossas instituições democráticas que, quando estas rejeitam o marasmo vigente, o que dizem ecoa como um estrondo. A recente audição parlamentar da Provedora de Justiça foi isso mesmo — estrondosa. Porque num país onde a política descobre sempre duas versões para um acontecimento, Maria Lúcia Amaral iluminou o escrutínio público com factos. Porque, perante a desresponsabilização política em curso, apresentou evidências de negligência e inacção políticas. E porque, quando demasiados alegam que nada fazia prever um homicídio às mãos de inspectores do SEF, a Provedora resgata recomendações por seguir, avisos ignorados e promessas incumpridas para contrariar um quadro institucional propício à discricionariedade. Antes, a situação do ministro Eduardo Cabrita era politicamente insustentável. Agora, escalou para o degrau da indignidade objectiva.

O que disse a Provedora de Justiça? Primeiro, lembrou que a situação insustentável do Centro de Instalação Temporária (CIT) do aeroporto de Lisboa já havia sido denunciada por si em 2018, naquilo que então classificou de “no man’s land contemporâneo”, acusando o SEF de “quebra de regras” e de ali operar “num domínio de grande obscuridade”. Segundo, Maria Lúcia Amaral assinalou que, em 2018, o ministro Eduardo Cabrita reconhecera a gravidade desta “situação terrível” e anunciara a construção de um novo CIT em Almoçageme — que ainda não existe, no que a Lúcia Amaral qualificou de “falha do Estado” e de “frustração sistémica”. Terceiro, a Provedora constatou que, embora durante anos nada tivesse mudado, melhorias foram introduzidas logo após o homicídio de Ihor Homenyuk — por exemplo, o CIT fechou e reabriu em Agosto, remodelado e com condições mais adequadas, deixando também de receber requerentes de asilo (de modo a evitar sobrelotação). E, desta coincidência temporal, retira uma ilação: a inacção desde 2018 representa responsabilidade política, visto que “há aspectos que sempre correram mal e que diziam que não era possível serem alterados e que agora foram”. Quarto, atirou uma conclusão lapidar: “Não há polícia nenhuma do mundo que esteja preservada dos piores horrores, mas há circunstâncias institucionais e materiais que são propícias a que eles aconteçam e foram estas circunstâncias que existiram.” É por isso que “a grande responsabilidade está em todos estes anos não se ter encontrado alternativa para aquilo que era visivelmente insustentável”.

Há duas semanas, o ministro Eduardo Cabrita exibiu ilimitada desfaçatez ao se auto-intitular campeão da defesa dos direitos humanos, elencando as iniciativas que tomou após a morte de Ihor Homenyuk e criticando quem (políticos e comentadores) havia acordado tardiamente para o assunto. Mas, como se vê, quem ficou a dormir foi o próprio ministro Eduardo Cabrita: durante dois anos, não assegurou a construção de um novo CIT, não alterou procedimentos atentatórios aos direitos humanos, não protegeu a dignidade de cidadãos retidos na fronteira portuguesa, não contrariou a obscuridade operacional no CIT do aeroporto de Lisboa. Ou seja, permitiu as circunstâncias institucionais que levaram à acção discricionária dos inspectores do SEF e à morte de Ihor Homenyuk.

A complexidade da governação nem sempre torna possível ligarem-se os pontos entre decisões políticas e falhas que resultem em fracassos ou tragédias. Será uma ministra responsabilizável por um incêndio florestal de grandes proporções? Será um ministro responsabilizável pela queda de uma ponte? Será um governo responsabilizável pelo enfraquecimento dos desempenhos escolares de alunos portugueses em provas internacionais? A resposta é que depende — se por vezes há acontecimentos incontroláveis, outros derivam da acção ou inacção governativa (o que frequentemente fica sujeito a interpretação).

Ora, como demonstrou a Provedora de Justiça, no caso concreto da morte de Ihor Homenyuk não há grande margem para interpretações criativas: aconteceu o que, muito antes, se avisou que poderia acontecer se medidas não fossem tomadas — e não foram. Eduardo Cabrita é culpado de inacção, politicamente responsável pelos atropelos legais executados no CIT do aeroporto de Lisboa. Será demasiado exigir ao Primeiro-Ministro que nos devolva um bocadinho de dignidade e o demita?

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