O mundo ficou mais justo quando a ciência preencheu muitos lugares, antes, ocupados pela Igreja. E trouxe-nos a ideia de que a técnica podia, de tal forma, ajudar a sermos um bocadinho Deus que, com o tempo, criámos a ilusão de que, quanto mais ciência colocássemos em tudo aquilo que fazemos, mais capazes ficaríamos e tudo seria mais fácil. É claro que, com isso, tudo ficou mais tecnocrático. Mas, ainda assim, ficámos a ganhar.

A ânsia de pormos ciência em tudo e em mais alguma coisa talvez tenha, perigosamente, esquecido o lugar que Deus foi tendo no crescimento da Humanidade. E trouxe-nos uma nova categoria de pais: os pais com uma “aspiração a qualquer coisa de tecnocracia” nos seus gestos para com os filhos. Pais que frequentam escolas de pais. Pais que se queixam porque as crianças não nascem equipadas com manuais de instruções. E pais que procuram, avidamente, todos os livros escritos para pais (sobretudo, aqueles em que lhes são propostas leituras fáceis de educar, sem gritar, com felicidade, de forma positiva e cheios de optimismo) que, por vezes, faz com que, em muitos restaurantes, tenhamos crianças agitadas, numa algazarra acompanhada de guinchos, e com pais que lhes falam devagar, de forma, levemente, zen, com resultados nem sempre tão infalíveis como quando lhos “vendem”.

Percebe-se o dilema dos pais: ao contrário de tudo aquilo que fazem, profissionalmente, falta-lhes curriculum. Têm poucos irmãos. Poucos filhos. São pouco tios. E são pais cada vez mais tarde. Logo, não têm nem uma certificação de qualidade nem experiência para serem pais. Sobretudo, perante a arte milenar de cuidar das crianças: qualquer coisa entre serem artesãos de sentimentos, costureiros do sexto sentido e aprendizes da arte de marear com a ajuda de simples sinais. Diante da qual lhes sobram blogs a resumirem a vida mental às neurociências, em que ninguém lhes parece recordar que a intuição humana é o topo de gama do “equipamento de base” que têm dentro de si e onde não lhes recordam que não há GPS que substitua o sentir dos pais quando dizem: “vou por aqui!”. Ou seja, num mundo de curvas normais, tabelas e certificações, há qualquer coisa de “jurássico” nisto de educarmos. Em função do que os pais – que, por vezes, se sentem com demasiadas qualificações para determinadas funções – acham que a sua formação parece não acompanhar todos os desafios que uma criança sempre lhes coloca.

Para complicar tudo um pouco mais, os avós – sendo, aos olhos dos pais, muitos menos “qualificados” – têm uma experiência no desempenho da função de pais que lhes dá uma sabedoria (não-certificada, é certo), que é duma utilidade sem fim quando se trata de se sintonizarem com os netos. E, para agravar, ainda mais um bocadinho, tudo isto, os pais estão demasiado habituados a estruturar um curriculum, onde citam, sobretudo, as coisas boas que já fizeram. E, a par, quase sem darem por isso, vão acumulando um outro “curriculum”, feito de fotografias do Instagram e de posts do Facebook, onde em todos os momentos parecem ser seguros das suas opiniões, felizes e sorridentes. E onde tudo (até as sopas!) é muito bonito.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Um dia, passaremos a exigir, associado a tudo o que já fizemos de bom, um curriculum de falhanços. As coisas que ansiámos ser capazes de realizar e que acabaram num enormíssimo fracasso. As vezes em que fomos a jogo e perdemos, sem apelo. Aquilo que tentámos concretizar e que, por preguiça ou por medo, se ficaram só pelas intenções. Mas que, mais do que tudo o resto que realizámos com boas notas, ajudam a perceber que fomos tenazes e perseverantes, e tivemos a garra de não deixarmos de aprender com os erros. Até conseguirmos tudo o que fizemos bem feito. E que, mais do que todas as vitórias, nos formataram para a sabedoria.

Ora, quando os pais confidenciam que não há nada de mais difícil do que sermos pais, eles têm razão. Mas é, sobretudo, mais difícil quando os pais se imaginam sem qualificações certificadas e sem “técnica” para o serem. E, ao contrário dos “tutoriais” que acabam por ter acerca de quase tudo, acabam a fazê-lo da mesma forma – empírica e intuitiva (e, às vezes, muito assustada) – que os seus antepassados mais remotos já utilizavam.

Sermos pais não é uma carreira; é um estado de espírito. Que não se atinge à margem dos erros. Bem vistas as coisas, fazemos curriculum, como pais, sobretudo com erros e falhanços. Por outras palavras, nunca estamos preparados para sermos pais! Nunca somos pais da mesma forma duas vezes. Nunca somos pais à margem dos erros, dos enganos e das dúvidas. Nunca somos pais se andarmos sempre à procura de nos certificarmos daquilo que somos capazes de fazer de cada vez que somos pais. Ou se transformarmos os filhos numa outra “carreira” onde os sucessos das crianças pareçam servir – quando não deviam! – como acrescentos ao curriculum dos pais.

Num mundo em que os nossos filhos nos pedem “Pai, vê aí, no Google, se Deus existe!”, reconhecer que sermos pais é aquilo que mais nos torna “reserva natural da vida selvagem”, faz com que seja muito difícil, para todos, sermos pais. (É tudo muito sentido. Muito “olhos nos olhos”. Muito conversado. Muito intenso. Com muitos conflitos. E muito comovente!) Não, os filhos não são difíceis; difícil é a exigência de sermos pais, no século XXI, sem as dificuldades “jurássicas” de todos os pais. E, no entanto, técnica à parte, não há mais nada como termos um filho ao nosso colo e falarmos com ele à margem da necessidade das palavras para nos sentirmos mais próximos de ser Deus! Há coisas – como isto de nos faltar sempre algum curriculum para sermos pais – em que as “tradições” ainda são como eram. Que bom! Não é?…