A maior parte das pessoas que me lê é do Brasil. Gosto de pensar que, nesse sentido, sou um português que está mais à frente porque, a menos que haja uma mudança substancial da chegada ininterrupta de brasileiros, qualquer português que seja lido em Portugal no futuro será necessariamente lido por uma quantidade crescente deles. No meu tempo de vida nunca me apercebi de uma mudança tão grande a acontecer connosco e por isso continuo a achar extraordinário (e extraordinário também no sentido de chocante) que se fale tão pouco na imprensa (pelo menos do que vou lendo) acerca da nossa abrasileirização em curso. No fundo, talvez não me surpreenda tanto: nós, portugueses, temos uma hesitação fora de série ao lidar com a mudança.

Desde que escrevo no Observador, este é o quarto artigo dedicado mais directamente a este assunto. Se me tirarem o Brasil, não tenho assim tanto para dizer, de facto. Porque cada vez mais me convenço que o futuro português é brasileiro. Reconheço que esta abrasileirização me tem beneficiado pessoalmente: enquanto pastor evangélico, posso muito mais facilmente ser entre brasileiros uma pessoa não só normal (condição que continua a ser-me impedida em Portugal) como até desejada. Quando um evangélico português vai a um país com muitos evangélicos, como o Brasil ou os Estados Unidos, sente nesses países estrangeiros um acolhimento que nunca recebeu no seu próprio. Uma das coisas interessantes acerca de ser evangélico em Portugal é que essa condição religiosa impede-nos de sermos patriotas, mesmo que sejamos politicamente conservadores (como eu sou). O patriotismo é um luxo de quem cresce em casa entre a maioria.

Um evangélico em Portugal não acredita em esquerdas, onde as causas supostamente fracturantes não conseguem maquilhar que as pessoas ainda se sentem em casa na maioria, e não acredita em direitas, onde as causas supostamente anti-fracturantes celebram as pessoas que se sentem em casa na maioria. Um evangélico português pode ter um faro apurado para saber que, à esquerda, a defesa das minorias vem de um lugar de privilégio e não de real empatia com elas, e saber que à direita a indiferença com as minorias não vem necessariamente de uma preferência mas de um privilégio mesmo. Dito isto, desejo não ver o mundo a partir do facto de pertencer a uma minoria, ainda que não perca a oportunidade para dizer aos defensores oportunistas dessas minorias que do assunto eles não percebem nada, e aos outros que alguma coisa eles deveriam perceber. Querem saber o que é pertencer a uma minoria que, quando defendida, não dá charme a ninguém? Sejam evangélicos em Portugal.

Dito isto, é óbvio que chateia uma minoria recém-chegada a apontar defeitos à maioria que já cá está há mais tempo. Tão ou mais irritante que o tom dos meus parágrafos anteriores, é, por exemplo, quando um brasileiro aqui publicita os defeitos portugueses. Até eu, um chato sempre com uma palavra negativa a dizer acerca de Portugal, não posso quando um brasileiro elenca as queixas que tem acerca de Portugal. Inevitavelmente reajo negativamente, com vontade de calar a boca do estrangeiro descarado que ainda agora chegou e já está a encontrar problemas. Como o povo diz, quem está mal que se mude, certo? Não há nada como uma ousadia imigrante para criar patriotismo em quem nunca o teve. E até ficamos certos de que, se fôssemos para o Brasil, certamente evitaríamos oferecer opiniões precoces. A nossa proverbial serenidade impede-nos desse tipo de inconveniências, achamos.

Uma das primeiras mulheres por quem me apaixonei televisivamente foi a Maitê Proença. Em 1983 ela era a Juliana da “Guerra dos Sexos”, em 1987 ela era a Camila do “Sassaricando”, e em 1989 ela era a Clotilde do “Salvador da Pátria”, só para dar três exemplos. Mas em 2007 ela era a senhora que num vídeo para o programa “Saia Justa” fazia pouco dos portugueses, e eu, como muitos outros crescidos aqui caidinhos por ela, quase precisámos de terapia, sobretudo na cena em que, imitando uma estátua portuguesa, deixava escorrer o seu cuspo para a câmara. Como era possível a nossa musa brasileira revelar-se uma hidra destruidora dos nossos encantos nacionais? Talvez o Brasil da nossa infância, uma espécie de América mais nossa e menos Hollywoodesca, não fosse afinal uma espécie de Portugal mais bem resolvido e exuberante do outro lado do mar… Talvez os brasileiros não correspondessem aos anjos televisivos que habitaram os nossos sonhos infantis.

O primeiro problema da história da Igreja não foi assim tão diferente. Em Jerusalém, e como em qualquer igreja evangélica em Portugal, havia os de lá e os que de fora chegavam para lá ter casa. Neste caso, as viúvas gregas começaram a queixar-se que não eram tão bem cuidadas como as viúvas judias. De um momento para o outro, acabou-se aquela imagem da Igreja de que toda a gente gosta, que estupidamente continuamos a alimentar como se o livro dos Actos dos Apóstolos se resumisse aos primeiros quatro capítulos. A primeira grande crise entre os cristãos foi também um choque de culturas. É por causa disso que o cristão, pertencendo a uma comunidade multi-cultural, não crê em histórias da carochinha em que os povos naturalmente se dão bem uns com os outros. Estamos vacinados contra utopias desde o princípio da nossa história. Onde está Cristo, está uma cultura feita de culturas lutando para que Cristo seja a principal—nunca foi fácil mas é o nosso fim.

Quando há dois anos preguei sobre o capítulo seis do livro dos Actos disse que os brasileiros em Portugal iam ter de ter calma e os portugueses iam ter de perder alguma. Como assim? O brasileiro que sofre por estar em Portugal deve saber que parte do seu sofrimento é sinal de que ele saiu mesmo do Brasil—não é possível sair sem sofrer. Se Cristo que é Deus sofre ao sair do Céu, nós queremos escapar ilesos quando fazemos algo parecido? Por seu lado, o português não pode fingir que não estamos no meio de uma das maiores mudanças sociais que nos aconteceu com aqueles nossos discursos redondinhos da tanga. É precisamente para não sermos tentados por nacionalismos que dão a Portugal uma superioridade que ele nunca teve que precisamos de saber acolher a sério, reconhecendo que aqueles que Deus junta nenhum demónio, por muito patriota que pareça, deve separar. Os brasileiros que cá estão são o Portugal do nosso tempo: cabe-nos orientar a sua chegada.

Vão ao YouTube e pesquisem por um lugar qualquer de Portugal. É muito improvável que a busca não vos devolva um vídeo de um brasileiro celebrando a casa que aí encontrou. Não tenho visto vídeos de portugueses a esbanjar a alegria que sentem por viver em Oeiras, em Vila Nova de Santo André, ou na Pampilhosa da Serra—mas há vídeos de todos esses lugares descaradamente celebrados por brasileiros, oferecendo-nos elogios que dificilmente oralizaríamos. Por vezes tenho de me esforçar para não chorar a vê-los. O meu país está a mudar, sendo criticado por pessoas que cá não nasceram. Mas são também essas pessoas que estão a agradecer a Deus por ele como nós, portugueses, nunca o fizemos.

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