Sabemos que os debates eleitorais nas presidenciais norte-americanas contam pouco. Este ano menos ainda, já que o número de indecisos que tencionam votar parece não passar muito dos três por cento. Mas, ainda assim, há questões sobre o debate que opôs Donald Trump a Joe Biden, na passada terça-feira, que vale a pena salientar.

Em primeiro lugar, verificou-se – já se sabia, mas tornou-se ainda mais claro – que há duas visões irreconciliáveis dos Estados Unidos da América, consoante o candidato. O mundo de Trump oscila entre o sombrio e o hiperoptimista e o de Biden é mais moderado, ainda que o que quer que existisse de positivo tenha sido destruído por Trump. No que respeita à saúde, à economia, à segurança, à violência, às questões climáticas, ao racismo e por aí fora. É certo que os debates servem para isto: salientar diferenças. Mas neste caso, as diferenças são tão profundas que fica a sensação que a América se tornará ingovernável, independentemente de quem ganhar as eleições. As instituições foram desenhadas para se vigiarem mutuamente. Mas partindo do princípio que haveria um entendimento mínimo de bem comum. E esse acordo não está lá.

O segundo ponto, é que Joe Biden estaria sempre em desvantagem. Não só porque Trump é um competidor agressivo nestes contextos – e conseguiu irritar o adversário para além do que seria expectável –, mas porque Biden tem as mãos e os pés atados. A certa altura disse: “o Partido Democrata sou eu”. Mas não é. As posições dentro do próprio partido são demasiado díspares, o que empurra o candidato centrista para uma esquerda com que não se identifica, o que o obriga a oscilar entre aquilo em que verdadeiramente acredita e o que claramente não subscreve (ficou claro que não se identifica com o Green Deal, tal como foi desenhado pela ala mais radical do partido). Biden sabe que não pode perder um único voto – nenhum dos candidatos pode, com margens tão pequenas – e sabe que o eleitorado mais motivado para votar está mais à esquerda do que as suas próprias posições. Já Trump criou para si próprio uma avenida aberta para dizer o que bem entende. Ser desabrido e incorreto foi uma das razões por que ganhou as eleições há quatro anos. Desde então, mantém a sua base de apoio praticamente intacta. E durante os últimos quatro anos, o Partido Republicano, em geral (há exceções conhecidas), desistiu de lhe fazer frente.

Há um terceiro elemento que não me parece despiciente. O debate é dirigido aos norte-americanos. Este debate, em especial, foi dirigido aos americanos de “colarinho azul”, que os democratas perderam para os republicanos há quatro anos, muitos deles residentes nos swing states. Mas o mundo inteiro está a ver. Parte vê com preocupação: os Europeus e outros Estados que costumavam fazer parte da ordem liberal internacional, que querem (com razão) que Joe Biden ganhe as eleições, porque sabem que lhes convém reconstruir a ordem anterior e o laço transatlântico e isso é muito difícil com Donald Trump. Outra parte, nomeadamente potências como a China e a Rússia, vêm com satisfação a tremenda confusão interna em que se transformaram os Estados Unidos. Donald Trump, que considera o prestígio internacional uma ferramenta fundamental para exercer o poder norte-americano, acaba por cair na sua própria armadilha: para derrotar o adversário expõe as fraquezas nacionais ao resto do mundo.

A última nota vai para o conteúdo do debate: foi paupérrimo. O que sobrou no imaginário coletivo foram insultos, faltas de educação e outros momentos constrangedores para quem está em casa a pensar que um daqueles homens será o seu presidente nos próximos quatro anos. Há quem argumente que em política é assim. Mas prefiro pensar que não se deve normalizar o que não é aceitável – e a imprensa norte-americana, bem, não se coibiu de criticar duramente os candidatos. Assim, este foi o debate da desmobilização. Se querem convencer os eleitores a sair de casa (nem que seja para ir ao correio), não me parece que seja este o caminho. Quem o ganhou? Ninguém. Nem Trump, nem Biden. Muitos menos, os norte-americanos.

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