O surgimento da pandemia COVID em 2020, constituiu uma grande oportunidade para os governos consumarem o mais relevante desígnio de todos os poderes, pequenos ou grandes: a “festa regulamentar”.

Na tradição constitucional dos países do continente europeu, os regulamentos têm um âmbito de aplicação muitíssimo maior, que por exemplo no Reino Unido, onde a tradição é a chamada common law. Esta permissividade constitucional, facilita o exercício pelo poder político de vastas prerrogativas regulamentares, ora usadas ao arrepio da mais normal sensatez ora, mais grave, a limitar abusivamente a liberdade individual em situações não especialmente excepcionais.

Escolhemos como exemplo deste frenesim regulamentar, o período entre o final de Outubro de 2020 e meados de Julho de 2021. Nesses oito meses, em Leis, Decretos-Lei, Portarias, Regulamentos, Resoluções, Decisões e Despachos foram publicadas 272 normas, que vão desde a denominação de regiões vinícolas ás características do gel desinfectante.

Para além da profusão de normas e regulamentos, o modo de legislar mantém a sua tradicional opacidade e consequente dificuldade de percepção por parte dos cidadãos destinatários. Um exemplo: A Portaria 4/2021, que surge como “Segunda alteração à Portaria nº 390/2019 de 29 de outubro, que procede à quarta alteração à Portaria nº 224/2015 de 27 de julho”. Trata-se de norma sobre as regras de prescrição de medicamentos. Quem necessitar de entender o que tudo isto significa, tem de consultar a norma de 2015, a norma de 2019 e a norma de 2021. Só assim entenderá (se entendível for, claro) as obrigações de informação a prestar aos utentes na dispensa de medicamentos, que é o objectivo da norma. A republicação das normas integrais sempre que é feita uma alteração, deveria passar a ser uma obrigação do legislador e de todos os governos.

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De entre a panóplia de despachos, também não podia faltar a norma anual de todos os governos, que altera os modelos dos impressos do IRS do ano anterior. Quem preenche o IRS, sabe por experiência, que os modelos nunca são os mesmos de ano para ano, sem que para tal inusitada alteração, seja dada qualquer explicação. Claro que para esse notável desígnio, foi publicada a Portaria 8/2021 que aprova os” modelos de impressos destinados ao cumprimento da obrigação declarativa prevista no nº 1 do artigo 57º do Código do IRS e respectivas instruções de preenchimento”. Provavelmente existiria um grave problema no país, se o modelo não fosse alterado…

Esta “festa regulamentar” do período pandémico teria várias cerejas em cima do bolo. Escolhemos uma que parece valer por todas, quanto à minúcia e ao delírio regulatório vigente.

Estamos a falar do Despacho 1053/2021 de 26 de janeiro de 2021 que define as especificações técnicas a que deve obedecer o gel desinfectante cutâneo para que possa beneficiar de incentivos fiscais, leia-se, para beneficiar da taxa reduzida de IVA e alguma dedução á colecta de IRS.

Se existe coisa com que os governos não brincam é com impostos e para salvaguardar que a receita fiscal sobre este produto é reduzida ao limite estritamente necessário, o Despacho, que não resistimos a transcrever em parte, fixa o que deve entender-se por gel desinfectante: “um produto biocida desinfectante de mãos do tipo produto 1, de acordo com as definições constantes no Anexo V do Regulamento 528/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de maio de 2012”.

Mas para beneficiar da taxa reduzida de IVA, esse biocida, tem de ter um” teor em álcool etílico (CAS nº 64-17-5) em volume (% v/v) de pelo menos 70%; ser um produto desinfectante cutâneo com teor em álcool isopropílico (CAS nº 67-63-0) em volume (% v/v) de pelo menos 75%.

Finalmente “o composto activo e o seu teor em volume do produto desinfectante cutâneo deve estar claramente identificado no rótulo do produto, nos termos do disposto no Regulamento (CE) nº 1272/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de dezembro de 2008 e em cumprimento do nº 2 do artigo 69º do Regulamento (UE) nº 528/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de maio de 2012”.

Só faltou citar a Magna Carta, provavelmente porque o Reino Unido já abandonou a União Europeia, vá lá perceber-se porquê.