Portugal foi bem-sucedido na primeira fase do combate à pandemia covid-19. Apesar da escassez de meios, sobretudo na fase inicial da pandemia, o sistema nacional de saúde e, em particular, as unidades de cuidados intensivos foram capazes de responder ao aumento do número de infectados.

No confinamento, não houve milagre e não foi preciso um milagre. O estado de emergência foi declarado e renovado por duas vezes. As forças de segurança têm estado na rua. Mas, de facto, o confinamento dos portugueses em suas casas não requereu medidas especiais. Antecipámo-nos à chegada do vírus e às restrições impostas pelas autoridades, incluindo dos responsáveis da área da saúde. Afinal, as quarentenas são uma prática a que recorremos desde há muito séculos para conter epidemias.

O grande desafio, a reabertura da economia, está ainda para chegar. Esta é uma experiência nova. Ninguém sabe como se faz o desconfinamento. Podemos observar as medidas que estão a ser adoptadas noutros países. Podemos ter como referência os seus critérios – ver, por exemplo, o documento do Instituto ifo para o governo alemão. Mas as medidas de reabertura terão de ser específicas de cada país. Dependerão das idiossincrasias da sociedade (estrutura etária ou a autodisciplina no respeito das indicações das autoridades), da estrutura da economia (por exemplo, percentagem da população em teletrabalho) ou da estrutura administrativa do Estado (estruturas centrais, regionais ou locais).

O Primeiro-Ministro António Costa informou-nos que ensaiaremos o regresso à normalidade no dia 4 de Maio. Reposição da mobilidade da população. Regressar à escola. Reabrir o comércio. Ligar as máquinas das fábricas. Recuperar hábitos de consumo. Cortar o cabelo. Tratar uma cárie dentária. Refeições em restaurantes. Reocupar os espaços públicos. Fazer jogging. Tomar banhos de mar e de sol. Tudo isto mantendo o distanciamento social. Sem provocar uma aceleração do contágio e sobrecarga no sistema de saúde.

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O sistema de saúde estará reforçado, em recursos humanos e equipamentos. Os transportes públicos estarão desinfectados e com mais espaço para os utentes. Os professores e alunos terão máscaras. Os profissionais do comércio, indústria e serviços estarão munidos dos necessários equipamentos de proteção individual. A capacidade de realizar testes em grande quantidade estará garantida, de forma a identificar os novos infectados e os imunizados.

Sabemos que a reabertura será feita por tentativas. Haverá avanços e recuos, em resultado do surgimento de novos surtos. Estes exigirão rapidez de adaptação e flexibilidade nas medidas. As mudanças na estratégia gerarão insegurança e resistência das populações. Nos primeiros tempos, a resistência à saída de casa pode prevalecer. Numa segunda fase, quando os apoios do Estado se esgotarem, prevalecerá a resistência ao fecho de empresas ou ao confinamento de determinadas regiões. O Governo vai ter de fundamentar as suas decisões.

Apesar das resistências iniciais nas democracias, começam a gerar-se consensos em relação à utilização de dados em tempo real, quer da actividade económica quer do estado de saúde das pessoas. Neste campo, a União Europeia tem a vantagem de ter sido pioneira na protecção dos dados individuais (RGPD). Num ambiente com tanta incerteza, esses dados serão essenciais para monitorizar a situação da economia e da pandemia e para a implementação eficaz da estratégia de reabertura. Mas serão também essenciais para uma comunicação rigorosa e transparente com a sociedade. Sem essa comunicação, não será possível criar a relação de confiança necessária à reabertura e recuperação da economia. A não utilização dos dados disponíveis colocaria as democracias numa posição de enorme desvantagem em relação aos regimes autoritários neste combate.

Nesta crise, tem sido muito discutido o movimento do pêndulo no sentido de um reforço do papel do Estado. Trata-se de facto de um grande teste à capacidade do Estado desempenhar as suas funções essenciais: na saúde, no apoio social, na educação, na segurança, na justiça ou nas infraestruturas. O processo de reabertura da economia exige um Estado forte e eficaz. O Estado português é grande e centralizado. Mas é um Estado fraco e ineficaz. A falta de recursos humanos qualificados está há muito tempo identificada, bem como a fraca autonomia em relação ao poder político. Reside aqui um dos maiores riscos do desconfinamento português.

O Primeiro-Ministro, em entrevista ao jornal Expresso referiu a existência de uma “equipa de cientistas que trabalha para a Direção-Geral da Saúde, para podermos fazer a avaliação da situação”. É fundamental conhecer os membros daquela equipa e o seu mandato.

Esta crise tem uma elevada complexidade técnica. O seu tratamento requer a constituição de comités de especialistas da área da saúde, da logística, das tecnologias de informação, da inteligência artificial, da estatística ou da economia. Estes especialistas poderão ser requisitados a universidades ou a empresas privadas. Deverão ter autonomia para fazer a avaliação da situação e apresentarem medidas para a reabertura da economia. Esta informação servirá para fundamentar as decisões do poder político. Em democracia, em poucas ocasiões as decisões políticas tiveram um impacto tão importante nas pessoas: na sua saúde, no seu modo de vida, nos seus rendimentos. E talvez nunca tenham sido tomadas num contexto de tanta incerteza. Uma comunicação transparente, que gere confiança nos portugueses, tem de estar cientificamente fundamentada.

Nos próximos meses, o Governo anunciará todos os dias uma enorme quantidade de medidas. Estas medidas serão tomadas de forma discricionária, baseadas na melhor informação disponível em cada momento. Muitas dessas decisões terão de ser revertidas. Surgirão inquietações na sociedade sobre as razões das decisões (ou da sua reversão). Por que razão nas escolas a abertura se fará em alguns anos e não noutros? Por que abrem algumas actividades económicas e se decide o encerramento de outras? Por que se decreta o cerco sanitário numa localidade e não noutra? Por que não se pode frequentar uma praia e se pode frequentar outra?

Decisões cientificamente fundamentadas, por comités independentes, serão o melhor garante da credibilidade e da eficácia das decisões discricionárias dos decisores políticos. Nesta crise, a opacidade não é uma opção. O que está em jogo é a nossa sobrevivência.