Este Domingo estive vai-não-vai para não ir votar. No dia anterior pensava que o coronavírus me tinha dado cabo do olfacto e do paladar, mas afinal foi apenas a falta de interesse gastronómico de um tomate pós-Brexit. Menos mal, assim fiquei livre para apanhar o bicho ao exercer o meu direito de participação democrática no consulado português em Londres. Quando a aplicação do governo britânico me pedir para entrar em isolamento profilático, mostro a lei eleitoral para as eleições presidenciais (que obriga os emigrantes a deslocarem-se ao consulado mais próximo, mesmo que esteja a centenas de quilómetros) à minha chefe que, de certeza, vai entender.

Não votava para uma eleição em Portugal há mais de uma década por vários motivos:

  • Ter a mesa de voto a dois mil quilómetros de distância, por preguiça e aversão à burocracia – resolvido com o recenseamento obrigatório dos Portugueses residentes no estrangeiro, que criou, de um momento para o outro, 1,5 milhões de novas abstenções;
  • Stress pós-traumático após múltiplas interacções com o consulado português em Londres – cada visita torna-se, rapidamente, num martírio kafkiano e, apesar de as coisas terem vindo a melhorar ultimamente, é mais difícil arranjar marcação do que bilhetes para o festival de Glastonbury;
  • Não me sentir representado por todo um espectro político sem vergonha na cara – entre Primeiros-Ministros com cursos obtidos ao fim-de-semana, ministros com equivalências por terem andado “na escola da vida”, presidentes de câmara reeleitos mesmo depois de serem acusados de fraude fiscal e branqueamento, vereadores que fizeram carreira a atacar a especulação imobiliária da qual vieram a beneficiar, infelizmente, a lista de exemplos é interminável.

Já escaldado com o referendo para o Brexit e vendo a salganhada do outro lado do rift atlântico, senti-me no dever de assinalar que há certo tipo de discursos e formas de fazer política que até podem ser constitucionais, mas não deixam de ser inaceitáveis. Desta vez, a ida ao consulado foi diferente. Estava tudo tão bem organizado e distanciado que, por momentos, pensei se não teria entrado na embaixada alemã por engano. Tentei confirmar a minha localização olhando para o boletim de voto, mas este era quase indistinguível dos boletins de voto da República de Weimar nos anos 20 ou do ataque da seleção nacional: muitos extremos de grande portento e um centro medíocre.

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A verdade, é que desde a minha infância sinto que as coisas chegam à Lusitânia com quatro ou cinco anos de atraso. Desde as músicas do Top+, passando por modas como jogar ao diablo ou entrar em confinamento, Portugal segue sempre num comprimento de onda atrás da crista anglo-saxónica. Era uma questão de tempo que o “Populism for Dummies” fosse traduzido para banda desenhada e aparecessem oportunistas a emular os Donalds e os Nigels da vida e a aproveitarem-se da desordem económica para ganharem popularidade e avançarem na sua agenda pessoal. Estarmos a ser liderados por uma classe que mantém a subida sistemática nos índices internacionais de corrupção não ajuda.

A autodefinição como pessoa do povo, anti-sistema e amiga da lei e da ordem é uma boa táctica para sair da penumbra num lusco-fusco. Eventualmente, vai transparecer a falta de ideias concretas para resolver os problemas estruturais que tanto se criticam e a vontade de atropelar a Constituição e governar com cassetete de ferro.

Ao décimo terceiro mês de 2020 teve que ser um fascista, por Ventura, a fazer-me sair de casa. Felizmente, desta vez ainda não foi de arrasto para me enfiar num cacilheiro de sentido único para o Tarrafal… Esperemos que as nossas instituições democráticas tenham fundações suficientemente fortes, que permitam a sua reconstrução quando submergirem no rasto deste tsunami de mediocridade sem escrúpulos.