Do princípio ao fim, o desgoverno de Portugal foi a marca do ano de 2022. As eleições de janeiro, na sequência do chumbo do Orçamento do Estado, deram uma inesperada maioria absoluta a António Costa. Tão inesperada que, passado quase um ano, o primeiro-ministro ainda não sabe o que fazer com ela. O Governo só viria a tomar posse dois meses depois, a 30 de março, devido à necessidade de repetição das eleições para os deputados do círculo da Europa, devido a irregularidades no processo eleitoral. A partir daí os casos e as demissões de ministros e secretários de estado sucederam-se. Nem o benefício mais imediato das maiorias absolutas, o da estabilidade, o primeiro-ministro consegue aproveitar. Desperdiçar estas vantagens, quando se vive em toda a Europa uma época de grande instabilidade, não tem desculpa.

O primeiro-ministro chama ‘casos e casinhos’ à instabilidade gerada pela sua liderança descuidada do governo. O que esteve na origem dos ‘casos e casinhos’ – as falhas nos serviços de obstetrícia, acusações de corrupção ou a falta de escrutínio na utilização de dinheiros públicos – são problemas gravíssimos e refletem debilidades estruturais das nossas instituições.

Infelizmente, os ‘casos e casinhos’ que têm assolado o governo no último ano não são espuma dos dias. Os ‘casos e casinhos’ refletem falhas institucionais que afastam a governação das correntes profundas que continuam a fazer divergir a economia portuguesa e adiam a definição da direção a seguir e das medidas a adotar.

A reflexão sobre a falta de rumo ou o desgoverno de Portugal no último ano fez-me regressar a três livros excelente livros que li em 2022.

Em Bismark o Homem e o Estadista (Edições 70), A. J. P. Taylor refere que o fundador da Alemanha e do primeiro sistema de segurança social tinha o sentido das grandes forças da história. No entanto, procurava sempre influenciar o curso dos acontecimentos. Nas palavras de Bismark: “O homem não pode criar a corrente dos acontecimentos; apenas pode flutuar com ela e manobrar o leme.” Bismark também compreendia como poucos a importância da geografia e a sua importância para a definição da estratégia geopolítica que mais favorecia a Alemanha. A. J. P. Taylor considera-o o maior mestre da diplomacia da história moderna. Estabeleceu como prioridade uma boa relação com a Rússia, porque considerava que daí vinha o maior perigo, definindo a linha vermelha de nunca apoiar a Áustria no caso de um conflito nos Balcãs. A Alemanha viria a quebrar esse princípio em 1914, estando assim na origem da Primeira Guerra Mundial. Depois de ler esta biografia fica-se mais seguro sobre a importância das políticas seguidas pelos países e também das suas lideranças para o curso da história. Não é assim possível deixar de pensar no desgoverno de Portugal.

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Outro livro muito importante que li em 2022 foi A Vingança da Geografia – o que os mapas nos dizem sobre os conflitos futuros e a importância da geografia na história de Robert D. Kaplan (Clube do Autor). Como o título sugere, este livro mostra-nos a importância da geografia para a definição das fronteiras dos países, para o seu desenvolvimento económico e para a sua importância no mundo. A abordagem de Kaplan filia-se na escola francesa dos Annales, onde se destacou Fernand Braudel, e de autores como Jared Diamond, que colocam as condições geográficas e naturais no centro do estudo do desenvolvimento e colapso das sociedades. O livro de Kaplan centra-se em questões de geopolítica e dá-nos uma perspetiva da organização territorial do hemisfério Norte. Para se afastar de correntes deterministas, Kaplan refere amiúde que geografia não é fatalismo. No entanto, ignorar as condições e os recursos naturais, a posição geográfica mais central ou periférica, o clima ou os países com quem se faz fronteira resultará numa incompreensão das condições necessárias para o seu desenvolvimento e relevância geopolítica. No caso da Europa Ocidental e dos Estados Unidos não é possível dissociar o seu desenvolvimento das suas vantagens geográficas: grandes planícies férteis ou a abundância de portos, rios navegáveis e recursos naturais. Por exemplo, “a bacia do Grande Mississípi, juntamente com o Canal Intercostal, tem mais milhas navegáveis do que todo o resto do mundo e cobre a maior extensão contígua de terra arável do mundo” ou “só a costa atlântica dos Estados-Unidos tem mais portos importantes do que o resto do hemisfério ocidental”. Neste livro, escrito em 2012, é também extraordinária a quase previsão da invasão da Ucrânia pela Rússia a partir da análise da geografia e da história. Ao ler este livro é inevitável pensar sobre a forma como a guerra na Ucrânia vai afetar a posição de Portugal no mundo.

O último livro que gostava de destacar é o Portugal na História – Um Identidade de João Paulo Oliveira e Costa (Temas e Debates). A primeira razão para destacar este livro é que ele faz muito bem ao amor-próprio dos portugueses e devia ser leitura obrigatória nas escolas. Este ano li o Civilização – O contributo da Europa para a civilização universal de Kenneth Clark e fiquei mais uma vez chocado com a ausência (injusta) da civilização portuguesa nessa história (o mesmo aconteceu com o livro Renascimento de Paul Johnson). João Paulo Oliveira e Costa apresenta-nos numa perspetiva muito positiva de Portugal, como um país sempre ligado às grandes correntes europeias, em todos as áreas. Curiosamente, começa por referir no Capítulo 1, O Território, o livro de Robert D. Kaplan sobre a importância da geografia. O autor propõe-nos o exercício inspirador de virarmos as costas ao mar na ponta de Sagres e pensarmos que Ali começa a Europa. Ao invés de pensarmos em Portugal como finisterra devemos pensar em Portugal como o princípio da Europa. Na construção do país inteiriço e na preservação da sua independência, Oliveira e Costa destaca o papel dos governantes e da relação muito estreita que um poder muito centralizado foi estabelecendo, desde a fundação, com os municípios. Ao contrário do que sucedia em França e na Inglaterra, onde a legitimação era feita por via divina, a entronização dos reis em Portugal era um ato civil. Ou a importância da língua portuguesa, que se tornou oficial em 1296, e da estabilidade das fronteiras que ficou definida em 1297, ambas por D. Dinis, para a criação do estado-nação. Como grande historiador que é dos Descobrimentos, João Paulo Oliveira e Costa dá-nos também uma perspetiva muito rica do nosso legado nos países banhados pelos três grandes Oceanos: Atlântico, Índico e Pacífico.

Ao longo da nossa história foram cometidos muitos erros. Mas devemos aos governantes e aos nossos antepassados a construção de um estado-nação, duma identidade, a preservação da nossa independência e uma presença em praticamente todo o globo. A integração na União Europeia e no euro foram os dois últimos grandes desígnios mobilizadores da sociedade portuguesa. Nos dias de hoje, por falha na liderança, vivemos entretidos com ‘casos e casinhos’.

Votos de um bom ano de 2023.