Um historiador observou recentemente que Dionísio I, o tirano de Siracusa na Sicília do fim do século V, tinha chamado a uma filha Aretê como compensação por ter uma mulher chamada Doris. Os nomes ‘Doris’ e ‘Aretê’ parecem incompreensíveis à maior parte dos leitores contemporâneos, que correm por isso o risco de não perceber as razões por que Dionísio terá feito o que fez.

É nestas alturas que precisamos de tradução. Acredita-se erradamente que a tradução consiste em encontrar palavras iguais em línguas diferentes, e que todos os termos de uma língua têm equivalentes em outras línguas. Mas traduzir é mais prosaicamente um dos muitos processos que usamos para tentar perceber coisas: e só muito raramente aquilo que se tenta perceber é uma palavra.

Aplicada ao problema de Dionísio a concepção errada de tradução não ajuda. A palavra grega ‘Doris’ diz-se em português ‘Doris’; as duas palavras são tão parecidas que não sabemos se são gregas ou portuguesas. ‘Aretê’ em grego, informam os dicionários entretanto, quer dizer virtude, ou qualidade particularmente excelente. A informação não ajuda porém a perceber o que se passou. Nenhum tirano português tentaria compensar o ónus de uma mulher chamada Doris chamando à filha Maria das Virtudes. Apenas com o dicionário não conseguimos explicar porque é que Dionísio achava que ‘Aretê’ compensaria ‘Doris;’ e sem essa explicação não percebemos nada da história que nos foi contada, isto é, não percebemos os motivos de Dionísio.

Para explicar os motivos de Dionísio de Siracusa temos que arranjar uma frase que os descreva. Deveremos tentar traduzir um nome próprio? Note-se que é pouco promissor traduzir ‘Doris,’ que existe em português e em grego; e ‘Maria das Virtudes,’ como vimos, também não ajuda. Temos de seguir outro caminho. Podemos por exemplo estipular que ‘Aretê’ quer dizer Rosarinho em grego. A história seria assim a seguinte: envergonhado por ser casado com uma Doris, Dionísio chamou à filha Rosarinho. Qualquer português percebe o problema, e a solução.

Retiram-se desta dificuldade de tradução duas ideias. A primeira é que, se traduzir consiste em explicar ou pelo menos chamar a atenção para aquilo que não se percebe, ou que nos atrai, ou que achamos importante, então traduzimos muito mais que palavras: histórias inteiras ou pelo menos frases, mas também rimas, ritmos, pausas, ou parecenças. A segunda lição é que só se consegue tentar perceber qualquer coisa, ou chamar a atenção para qualquer coisa, nos nossos próprios termos. Como os nossos próprios termos são geralmente os termos que nos são mais familiares, frequentemente, embora nem sempre, as traduções implicam a nossa língua: mas a minha pátria não é a minha língua; são os modos variados como lido com aquilo que não percebo.

Quanto ao que aconteceu a Doris, parece que morreu cedo. Dionísio, inconsolável, tentou uma breve carreira de dramaturgo de segunda linha, e uma das suas tragédias, conta outro historiador grego, chegou a ganhar o prémio Cidade de Almada.

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