Antes de os ingleses terem votado a favor do Brexit – a saída do Reino Unido da União Europeia – a Federação inglesa tinha iniciado um processo de “desbritanização” da equipa nacional. Até agora os resultados só tinham sido animadores nas camadas jovens, com títulos europeus e mundiais conquistados em várias categorias. Os sinais de renovação que chegaram à equipa principal não impediram a eliminação no Mundial de 2014 ao fim de dois jogos, nem o escândalo islandês no Europeu de 2016, com o costumeiro rol de erros de comédia gaga, expetativas defraudadas, indignação dos tabloides e períodos de reflexão existencial.

Ainda é cedo para tirar conclusões, visto que duas vitórias – uma, agónica, contra a Tunísia, e a outra, turística, contra uma equipa esforçada, mas de nível distrital – não chegam para uma avaliação fiável do estado geral de saúde da equipa. O certo é que duas vitórias nos dois primeiros jogos de um Mundial era coisa que já não acontecia à Inglaterra desde 2002 e, mesmo não querendo desvalorizar a tendência dos ingleses para as implosões súbitas, há sinais de que o bom trabalho feito com os jovens poderá finalmente dar frutos na equipa principal. É verdade que revitalizações anteriores foram igualmente acolhidas com entusiasmo, provavelmente até mais justificado – pensemos na geração de Beckham e dos restantes Fergie Babes –, com hipérboles nocivas – Rooney chegou ao Euro 2004 com o rótulo de “Pelé branco” –, e com uma confiança em jogadores que anunciavam uma nova era e um novo estilo para o futebol britânico – Aaron Lennon, Theo Walcott, Shaun Wright-Phillips – e apenas conseguiram criar um padrão ligeiramente diferente para os mesmos fracassos de sempre. Tão depressa prometiam emular o feito da equipa de 66 como se revelavam uma espécie de Rich Kids from Premier League, mais famosos pelos bólides e pelas WAGs do que pela qualidade em campo.

Este historial, e a já referida fraqueza dos adversários, faz temer pelo pior (ou pelo melhor, para aqueles que acompanham avidamente as participações inglesas por razões de entretenimento). No entanto, seria de um cinismo absoluto negar a alegria que esta equipa exibe em nome de reservas fundadas em tradições pelas quais ela não é responsável. A Inglaterra não é só a segunda equipa mais jovem do torneio (atrás da Nigéria e empatada com a França), como essa juventude se faz notar em quase tudo o que a equipa faz, nota-se no atrevimento, na maneira de festejar os golos e nos erros que, sendo a Inglaterra, não consegue evitar.

Nelson Rodrigues dizia que o jovem tem todos os defeitos do adulto mais o da imaturidade. Estes jovens ingleses tem todas as qualidades dos adultos mais a da imaturidade. Sterling, Lingard, Loftus-Cheek e Kane jogam com a alegria de um grupo de miúdos que acabou de se juntar num campo dos subúrbios para um jogo de “roda-bota-fora”. E hoje nem sequer jogaram Rashford, Dier, Alli e Alexander-Arnold. Há neles uma disponibilidade para a alegria e a beleza que, até ao momento, tem resistido à pressão de um acontecimento como o campeonato do mundo, uma pressão capaz de pôr Neymar Jr. de joelhos no meio do campo a chorar. O extraordinário golo de Lingard tem a assinatura de alguém que desconhece o significado da expressão “medo cénico”.

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A evidente cumplicidade resultou num golo – o quarto da meia-dúzia – que me levou a bater palmas em frente do televisor. Foi uma jogada tão bem ensaiada que, apesar do primeiro remate ter sido defendido pelo guarda-redes, ainda apareceu outro jogador inglês para marcar. Foi como se Gareth Southgate tivesse previsto tudo, até um eventual falhanço. A validade da jogada teve de ser confirmada pelo VAR, mas a qualidade do lance de laboratório exigia uma comissão científica. O clima aparenta ser tão descontraído que até o acaso, em forma de golos cómicos, se inclina perante a Inglaterra. Harry Kane selou o primeiro hat-trick de um jogador inglês num Mundial desde Lineker contra a Polónia em 1986 com um golo involuntário. Walker rematou e a bola tabelou acidentalmente no calcanhar de Kane antes de entrar na baliza.

Pode argumentar-se que o jogo foi contra o Panamá, mas a Inglaterra ensinou-nos a esperar acidentes quando mais nada a não ser a sua presença os faz prever. Pode argumentar-se que estes jovens ingleses são amáveis porque ainda não os vimos a sacudir o pó de mais um fracasso ou porque ainda não convivemos com eles há tempo suficiente para os detestarmos. Mas há, de facto, uma nova Inglaterra, e nem sequer é preciso olhar para o registo vitorioso das seleções jovens. Basta rever a primeira parte do jogo de hoje.

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É incrível como um jogo sem história – tal a diferença entre as duas equipas – acaba por ser histórico. Essa é uma das magias do Mundial, a dos pequenos prazeres estatísticos que proporciona. Foi o hat-trick de Harry Kane, a maior goleada da Inglaterra num Mundial (nunca tinha marcado mais de quatro golos num jogo) e o primeiro golo de sempre do Panamá na mesma competição. A felicidade dos jogadores e dos adeptos panamianos quando, ao minuto 78 e a perderem por 6-0, Baloy se esticou todo para responder a um livre e atirar a bola para a baliza de Pickford, é um daqueles enredos secundários que tanto são ampliados pelo Mundial como lhe conferem um sabor único. Para a história dos mundiais, este ficará como o dia em que um homem de 37 anos, o capitão Felipe Baloy, que começou o jogo no banco, marcou o primeiro golo do seu país e saiu do campo tão ou mais feliz que os miúdos do outro lado. No final, Kane levou a bola para casa, mas se houver justiça no mundo terá de a enviar por correio para a morada do capitão do Panamá.