1. A rábula do diabo é a face mais visível do lado habilidoso de António Costa — que alguns comentadores elevam mesmo a exemplo de génio político. Segundo a rábula, o insensível Passos Coelho seria uma espécie de Dom Quixote dos tempos modernos que via moinhos (a crise) onde eles não existiam. Daí que António Costa tenha passado boa parte do seu mandato a gozar com a direita por o diabo nunca ter chegado. Esquecer o futuro para jogar com o presente é uma tática habitual dos habilidosos mas também dos populistas.

E eis senão quando a crise parece estar ao virar da esquina depois do Bundesbank ter avisado para a séria possibilidade da Alemanha entrar em recessão técnica a curto prazo depois do PIB alemão ter contraído 0,1% no segundo trimestre e da produção industrial chinesa ter desacelerado para o seu ponto mais baixo dos últimos 17 anos — duas questões que estão interligadas e que são uma consequência da guerra comercial entre os Estados Unidos e a China iniciada por Donald Trump. Pelo meio, ainda temos a forte possibilidade de uma saída desordenada do Reino Unido (que também pode entrar em recessão técnica) da União Europeia e o risco da quarta maior economia europeia (a Itália) ser governada pela extrema-direita.

Numa altura em que os juros já estão em patamares históricos (0% no caso da taxa diretora do Banco Central Europeu), Mario Draghi pondera avançar para uma taxa diretora negativa e novo pacote de compra de dívida pública dos diferentes países que compõem a Zona Euro antes de deixar a cadeira de governador do BCE. Mas muitos especialistas duvidam da eficácia dessas medidas, o que só agrava a tendência para um ambiente económico negativo.

2. Depois de ter criado a rábula, António Costa preferiu fazer de Passos Coelho na entrevista que deu ao Expresso neste sábado e já começou a avisar que a crise que está a caminho pode “ter um efeito recessivo à escala global” como a que “tivemos em 2008” — e que levou Portugal a pedir o seu terceiro resgate. Uma dramatização ainda sem fundamento mas que lhe dá jeito, claro, para pedir um “Governo forte”, leia-se com maioria absoluta.

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Pior do que passar do oito para para oitenta é tentar tapar o sol com a peneira. Diz o primeiro-ministro que os portugueses podem estar descansados que a economia portuguesa está a crescer, em contra-ciclo com a economia mundial, e a convergir com a União Europeia.

Em primeiro lugar, a convergência de que António Costa fala como se estivéssemos a falar de um momento que ficará para os anais da nossa história coletiva resume-se a um número verdadeiramente assombroso: 0,3%. Não, não é gralha. São mesmo três décimas percentuais. É precisamente esse o valor do PIB português que cresceu acima da média europeia em 2017 e 2018. Um número que obviamente vale muito pouco quando Espanha, Irlanda ou países do leste do ‘nosso campeonato’ cresceram muito mais.

Por outro lado, Portugal está transitoriamente em contra-ciclo — e mesmo assim em ligeiro contra-ciclo com Portugal a crescer no segundo trimestre 1,8% em termos homólogos e 0,5% em cadeia, contra 1,1% e 0,2% da zona euro. Os efeitos de uma eventual recessão na Alemanha (o nosso terceiro parceiro comercial na UE) só se farão sentir em Portugal mais tarde. Basta que os alemães comprem menos carros para que a produção da Auto Europa caia, as exportações (que dependem como de pão para boca da fábrica da Volkswagen em Palmela) desçam e a Balança de Pagamentos seja seriamente afetada. Isto já para não falar do efeito-dominó que uma crise alemã provocará nos restantes países com quem estamos integrados na zona euro, pela simples razão que a Alemanha também é a principal parceira comercial de muitos deles.

Seja em 2020, seja depois, é inevitável que venha aí uma recessão — independentemente de António Costa chamar-lhe “diabo” ou “satanás”. A grande questão reside em saber — e era para isso que Passos Coelho tentava alertar em 2015 — se estamos preparados para enfrentá-la. Tendo em conta o que foi feito pelo Governo nos últimos quatro anos, a resposta é clara: não.

3. O Governo de António Costa não deu qualquer contributo relevante para a modernização ou para o aumento da competitividade da economia portuguesa — até José Sócrates teve maior ímpeto reformista no seu primeiro mandato. Costa apostou todas as fichas na distribuição de rendimentos que permitiu criar aos funcionários públicos e pensionistas uma sensação de bolsos pretensamente cheios — uma política que lhe dará muitos ganhos eleitorais nas legislativas de outubro e pela qual deve agradecer a Mário Draghi e à sua política histórica de juros baixos que implementou no Banco Central Europeu.

A única matéria que dá a António Costa algum espaço de manobra para lidar com uma crise económica mundial é o equilíbrio orçamental conseguido, nomeadamente o défice histórico de 0,5% do PIB obtido em 2018. Na teoria, o Governo poderá aumentar o défice até a um valor de 3% do PIB, respeitando assim as regras europeias da disciplina orçamental. Mas mesmo este resultado conseguido pelo Governo do PS também é frágil.

Por um lado, o equilíbrio orçamental não resultou de cortes estruturais na despesa mas sim da receita da maior carga fiscal de sempre sobre as empresas e as famílias e de cortes conjunturais no investimento e despesa corrente que fizeram com que a qualidade dos serviços públicos seja pior hoje do que nos tempos da troika.

Por outro lado, há uma contradição insanável entre um primeiro-ministro que avisa para a chegada de uma crise pior do que a de 2008 e o líder do PS que no seu programa eleitoral aprovado em julho prometeu aumentar o esforço orçamental com o investimento de 45% para 56%,  contratar mais funcionários públicos — o seu parceiro Bloco de Esquerda quer mais 120 mil funcionários para os próximos quatros anos —, garantiu que quer continuar a descongelar as carreiras e aumentar os salários mais baixos. Quanto custa? Não se sabe mas certo é que a despesa estrutural aumentará significativamente.

Pior do que essa contradição insanável é outra: se vem aí uma crise maior do que a de 2008, como diz Costa, então a credibilidade do cenário macro-económico com o qual o PS se apresenta a eleições em Outubro fica seriamente posta em causa. Não é possível combater uma crise e, ao mesmo tempo, aumentar a despesa estrutural do Estado com promessas de mundos e fundos para os funcionários públicos, prometer o primeiro excedente orçamental da democracia em 2020 (como está inscrito no Programa de Estabilidade), querer aumentar o PIB em 2,2% em 2023 e fazer descer a dívida abaixo dos 100% do PIB. Perante uma crise, tais promessas são falaciosas.

Tudo isto deixa-nos uma sensação de déjà vu. Já vimos este filme em 2009 quando José Sócrates derrotou Manuela Ferreira Leite com um programa eleitoral irresponsável que acabou revertido nas suas medidas essenciais depois de Sócrates ter descoberto que, afinal, o mundo tinha mudado e a crise (ou o diabo) estavam a bater à porta. Esperemos que o final da história seja diferente.