A verdade é que a tristeza dói. Nunca surge sem uma perda, sem uma desilusão ou sem uma decepção. Aviva a necessidade de reconhecermos os (vários) erros das nossas escolhas. Puxa-nos para a verdade sobre nós e sobre os outros. E ajuda, por isso mesmo, a pensar. De todas as pessoas indispensáveis que temos, permite esclarecer quem é que nos conhece, por dentro, e com quem é que contamos para nos resgatar das nossas dores. Por isso mesmo, a tristeza faz bem à saúde. Porque sem ela, em vez de humildes seríamos omnipotentes. No lugar das ganas e da garra teríamos uma passividade comodista. E em vez do orgulho, destemperaríamos na vaidade. Sem a tristeza não cresceríamos! Não converteríamos a perda em ambição. Não teríamos ressentimentos; é verdade que não. Mas ficaríamos na planura. Sem passado. Sem concavidade. Sem perspectiva. Sem lonjura. E sem futuro.

Quando estamos tristes, arriscamo-nos a ser mais verdadeiros. Porque perdemos as pequenas falsidades de todos os dias. Porque deixamos muitas das defesas narcísicas com que nos escondemos das coisas que nos envergonham. Porque não pensamos em círculos. E porque somos mais transparentes e mais espontâneos. Quando estamos tristes ficamos, na maioria das vezes, mais bonitos! Porque somos mais claramente (e mais facilmente) quem somos.

A verdade é que temos pouco espaço para estarmos tristes. Porque, por mais que sintamos as pessoas em nós e as escutemos por dentro, damo-nos pouco tempo uns aos outros. E parecemos não  trazer para a conversa “as nossas coisas”. Por “cerimónia”. Por desesperança. Por vergonha. E por vaidade. E isso é quase ridículo. Porque não temos como fugir às nossas dores. Somos pessoas sensíveis. E somos atentos. Como podemos não registar aquilo que nos magoa? Como podemos não sentir? Porque devemos fugir aos nossos sentimentos se eles são o melhor de nós? Não é possível crescermos sem dores. Mesmo que, no nosso crescimento, haja quem (por bondade) nos tente proteger das pequenas dores de todos os dias. E que faça com que, por isso, se desenhe em nós uma espécie de “imunodeficiência adquirida” à dor que, diante de qualquer uma, nos agita e nos “panica” como se, por falta de aprendizagem, cada dor fosse um precipício que nos engole, sem remissão. E nos danifica.

O grande problema das nossas dores nunca é a tristeza que elas nos trazem. Mas o desamparo que esclarecem. O que dói não é bem a dor. Mas a forma como ela deixa a nu a ausência de pessoas que a percebam. Que a acolham. Que a legendem. E que a resgatem. Em lugar de pessoas amigáveis para as nossas dores, temos, muito mais, quem nos diga “não penses mais nisso”, “tens que ser forte” ou “sê positivo”. É a aragem de solidão que as dores trazem consigo que carrega com mais dor aquilo que nos dói. São as pessoas que nos amam, quando nos falham, quem nos torna mais tristes. Porque (muitas vezes, quase sem se aperceberem) não nos deixam chorar nelas. Não nos aconchegam. Nem nos dão colo. São as pessoas que nos amam que nos fazem sentir mal-amados; quando a nossa dor não cabe nelas. E é por isso que as tristezas nos deprimem.

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É verdade que há pessoas, que passam por muitos sofrimentos, que nos parecem inquebráveis. E que parecem reerguer-se de todas as dores. E (mais, ainda) que diante de uma dor parecem ficar mais fortes  Às vezes, vimos demasiado no “aqui e agora” as dores das pessoas. Como se as experiências mais remotas de amor que elas tiveram não fizessem a diferença na forma como resistem, hoje, à dor. Às vezes, parecemos fugir de perceber que a esperança é o “antídoto” da dor. A esperança é a “economia do amor”. São as experiências de amor – mesmo que, hoje, nos faltem pessoas que nos acolham as dores – por mais remotas que tenham sido, que nos impedem que uma dor nos faça naufragar. Assim as nossas dores de hoje não sejam exorbitantes. Ou infindáveis. Ou não nos tragam de volta as dores longínquas de que fomos fugindo e que, entretanto, regressaram para nos encurralar ou para nos fazer uma cilada.

A depressão será, sobretudo, um desamparo cumulativo. É verdade que sim. Ninguém se deprime “por nada”! E todos já nos deprimimos. Porque somos pessoas. A depressão começa por ser um desamparo. Depois, transforma-se numa desolação e numa mágoa. E, a seguir, num desespero. É o desespero, quando nos cerca, que arrasa quaisquer vestígios de esperança que nos restem. E que nos mata.

A tristeza é o melhor anti-depressivo do mundo. Assim ela possa ser vivida com quem a mereça. Mas a verdade é que somos todos, mais ou menos, filhos de uma “geração Prozac”. Que crescemos com a ideia que as pessoas, quando se deprimem, ou quando se cansam da vida, são “fracas”. É verdade que fomos aceitando que há euforizantes que, precipitadamente, alguém considerou anti-depressivos. Como se – sem que nada mude na nossa vida, sem se pensar e sem outras pessoas com quem se possa contar – a dor se curasse; quase magicamente. E não é verdade. Aliviar a aspereza de uma dor ou resolver os motivos pelos quais ela existe não são bem a mesma coisa. Logo, o discurso insuportavelmente positivo é uma forma habilidosa de falarmos da tristeza com “pó de arroz”. Sem darmos conta que a melhor forma de ficarmos presos a uma dor é fugirmos dela. Ironicamente, uma geração que esconjura a tristeza e a depressão não é anti-depressiva. Uma geração que confunde alegria com euforia, e que vive a vaidade como defesa contra a vergonha (e alimenta o desprezo e o sentimentos de triunfo), vive “atascada” em defesas anti-depressivas. Logo, é depressígena; como talvez mais nenhuma.

Todos já nos deprimimos. Pelo menos, aos bocadinhos. A forma mais popular de falarmos da depressão, vê-se no modo como nos descrevemos “cansados”. Cansados da vida. Cansados do trabalho. Cansados da monotonia. Cansados do amor que não temos. Cansados. Às vezes, falamos dela pela sua subsidiária mias íntima; a saudade. A saudade do que já fomos. A saudade que nos leva a suspirar que o tempo volte para trás. Às vezes, falamos da depressão sem falar dela. Pelo desinteresse que se expande em nós. Pelos “não vale a pena!”  que se repetem. Ou pela indiferença a que chegamos. Mas todos já nos deprimimos. Muitas vezes!

Entendo que se fale da depressão como uma doença. Se estarmos deprimidos significar estarem adoecidos em nós os recursos de vida. A esperança. O entusiasmo. A determinação. A persistência. Ou a coragem, por exemplo. Mas não entendo que se fale da depressão como doença quando ela é tomada como um ensandecimento. Um espécie de idiotia a que se chega. Ou um “enlouquecimento” que nos assalta. Mesmo quando a vida é vista, primeiro, numa lucidez a preto e branco. E, depois, só a preto.

A depressão mata, claro. Devagarinho. Sob o olhar de todos. Se damos pouco espaço para a tristeza; se vivemos a depressão como uma fraqueza; e se, por isso mesmo, nos remetemos – todos com a ajuda de todos – a uma solidão assistida, talvez a “geração Prozac” seja a geração mais amiga da depressão que já produzimos.

Numa altura em que todos olhamos, com perplexidade, para quem, recentemente,  sucumbiu à depressão, era altura de, forma ruidosa, falarmos da crueldade com que muitos de nós reagimos ao sofrimento, alimentando o logro de imaginar que o inferno (só) vive nos outros. Quando – por omissão, por desmazelo ou por desprezo, diante dos infernos dos outros, que queremos longe – reagimos com sobranceria, com arrogância e com voyeurismo, ou quando exorcizamos, simplesmente, as nossas dores nas deles, o diabo são os outros. O inferno… “somos” nós.