No sul de Marrocos, quando você já está para lá de Marraquexe, como cantaria o Caetano Veloso, os comerciantes concedem o que costumam chamar de crédito berbere: quando algum cliente se propõe comprar um artigo da sua loja, os comerciantes concedem-lhe, cordialmente, a possibilidade de pagar antes de sair.

Crédito é confiança. É uma coisa que o vendedor tem (ou não) em relação ao comprador, antes mesmo de deste último entrar no seu estabelecimento. E quando não tem, como quando você já está para lá de Marraquexe, salvo uma permuta de bens, só há uma coisa que permite a transacção: o dinheiro (ou o cartão de crédito, porque o comerciante berbere confia nos senhores Visa, Mastercard ou American Express).

Sem confiança não há crédito, mas pode haver troca, sempre e quando as duas partes entreguem o estabelecido em simultâneo, como por exemplo, espiões sobre a ponte Glienicke, perto de Berlim. Mas como é difícil encontrar quem tenha o que necessitamos, e necessite o que temos, os indivíduos, num processo de descoberta, foram-se apercebendo que há coisas que toda a gente deseja, ou conhece quem deseje, e essas coisas foram estando presentes em todas as trocas.

E assim nasceu o dinheiro. Em distintos lugares e épocas, os indivíduos foram “descobrindo” o dinheiro. Foram também descobrindo que os metais possuíam propriedades que se adaptavam melhor a esta função, em suma, que faziam “melhor” dinheiro. Mais tarde, descobriram que o próprio crédito, uma instituição muito anterior ao dinheiro (que está presente naquilo a que chamamos o “favor”), também podia ser dinheiro, com vantagens óbvias e inconvenientes ocultos.

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Há quem pense que o dinheiro é uma criação do Estado e que não poderia sobreviver sem este. A explicação mais generalizada é a de que o dinheiro é uma convenção social. Que as pessoas acordaram entre elas utilizar “qualquer coisa” para facilitar as trocas e que o Estado foi quem garantiu que essa coisa, de outro modo inútil, tinha um determinado valor intrínseco. Além de a incapacidade manifesta por parte do Estado em manter esse tal valor intrínseco representar um sério óbice a essa explicação, esta equivale a acreditar que o dinheiro resulta de um acto de inspiração divina ou heróica, e esse tipo de pensamento é mais próprio dos mitos fundacionais do que das ciências sociais.

Elaborando um pouco, alguns autores sugerem que essa “coisa” afinal era um penhor, um símbolo de algo, esse sim valioso, como por exemplo de uma oferta sacrificial no templo. Ou seja, que o dinheiro era (e é) essencialmente um crédito, com a particularidade de não poder ser criado fora do Estado. Esta explicação, apesar de mais consistente do que a anterior, julga que porque algo é hoje assim, necessariamente foi sempre assim. Ninguém duvide que o dinheiro moderno é um crédito estatal imposto pela força, nomeadamente um crédito fiscal cujo valor depende essencialmente da obrigatoriedade forçosa de pagar impostos no futuro. Isso, porém, não significa nem que o valor desses papelinhos derive de uma fábula social, nem que todo o dinheiro seja crédito, e tenha evoluído do simples favor entre vizinhos exclusivamente por obra e graça estatal. Aliás, só muito recentemente, desde 1971, os Estados conseguiram impor um dinheiro exclusivamente creditício a nível mundial, um verdadeiro monopólio estatal sobre a instituição.

A impossibilidade de estabelecer relações de crédito com desconhecidos é um sério óbice a que agrupamentos humanos superem o aglomerado de algumas famílias e, em família, trocam-se essencialmente favores. O dinheiro é desnecessário mas a sua inexistência é um óbice às possibilidades de criação humana. Na pré-história, o fórum romano era um espaço onde as gens das colinas circundantes se juntavam para cumprir ritos em comum (como os matrimónios) e trocar bens entre si. Sem a descoberta do dinheiro, o espaço que veio a ser a cidade de Roma nunca teria sequer sido ocupado permanentemente. Sem essa ocupação permanente, não teria existido a República, nem o maior império da Antiguidade. Nem esse nem nenhum, porque todos os estados necessitam, quanto antes, apropriar-se da instituição do dinheiro.

A expansão do uso do dinheiro representa uma oportunidade única para a expansão da divisão do trabalho e do conhecimento em sociedades que podem chegar a albergar milhões de indivíduos. Através do dinheiro, desconhecidos podem viver lado a lado e trocar os frutos desse conhecimento; tanto entre si, como para lá de Marraquexe, nos confins do espaço onde o dinheiro que utilizem seja reconhecido como tal. Sem o dinheiro, é impossível o aparecimento das cidades e do comércio além-fronteiras, porque não existe a confiança necessária entre os indivíduos para que tal suceda. O crédito generalizado numa sociedade, quer dizer, a possibilidade de coordenar no tempo o momento em que duas partes completam uma transacção, é um factor adicional importantíssimo para a expansão dessa divisão do conhecimento.

Contudo, sem o primordial dinheiro-mercadoria, as aglomerações humanas nunca poderiam ter sido suficientemente grandes para sustentar aquele grupo dominante de pessoas a que habitualmente chamamos Estado, o qual, para se justificar, tenta impor a expansão do crédito a relações interpessoais onde este naturalmente não ocorreria. Não só o Estado não criou o dinheiro como, em última análise, é uma criatura deste. É nesse sentido que podemos afirmar que o dinheiro é a raiz de todos os males.