O tempo, disse Joseph Ratzinger na segunda parte da obra “O espírito da liturgia”, é uma realidade espacial prenhe, já no presente, de uma eternidade na qual esse faminto tempo não mais existe como medida ou mediação, pois, como nos garantiu Máximo o Confessor, não há espera entre o amor dado e o amor acolhido e (re-)oferecido.

No espaço de 15 anos, o histórico discurso proferido por Bento XVI na Aula Magna da Universität Regensburg, a 12 de Setembro de 2006, não perdeu actualidade. Apesar de esquecido por muitos, até mesmo por aqueles que mais o atacaram injustificada e injustamente nessa altura, apenas ganhou uma maior densidade de eternidade numa secreta e tensa celebração da verdade.

Essa corajosa exposição é um texto académico e pastoralmente brilhante e, se quisermos ser ainda mais justos, inclusivamente profético, no sentido teológico mais excelso deste termo. Tudo nele é magnífico: desde o tema relevante e revelador, aos essenciais desafios por si levantados, passando-se pela clareza acutilante, a poética narrativa, a assertiva concatenação interna e as humildes conclusões. As palavras de amor podem fazer magia, mas, às vezes, é a magia do amor que se converte seminalmente em palavras configuradoras de eventos epocais. Regensburg foi um destes eventos.

Não nos deixemos enganar, pois, por quem, tendo querido incendiar a água, acabou por encharcar, com o carburante da mentira e do ódio, um tão excelso exemplo de humanidade. O facto de, na época e em consequência das palavras então proferidas por Bento XVI, ter-se comparado este a «Hitler e Mussolini» e dito que o mesmo, de uma forma «impensada, […] caricaturizou o islão», são meros exemplos categóricos de que se pode estar morto antes da morte. De que se pode querer ignorar, respectivamente, que não se logra fazer alguém benevolente por imposições legais ou por rejeição frontal da lei.

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Uma tão grande e, porventura, até doentia aversão à verdade é testemunho imediato de uma clamorosa carestia de inteligência honrada e de sabedoria sensível. Confirmação, no fundo, de uma mentalidade frágil que, no caso presente e no limite, só se pode compreender por um de dois motivos: ou por exuberantes preconceitos viscerais, que tendem a assombrar a percepção da realidade; ou pela torturada convicção, perfeitamente errónea, de que o acto de ofender passa pelo se ser publicamente verdadeiro acerca de algo que se pretendia oculto.

Em ambos os casos, e como disse George MacDonald acerca da mentira, o choque de realidade a que uma tal carestia poderia poupar a quem assim vive, seria, justamente, aquilo de que este mais precisaria para sair da sua alienação auto-inflingida.

Todo o histórico e presciente discurso de Regensburg avança, com uma paixão e um recato singulares, ao sabor da convicção tipicamente cristã de que Deus, sendo Amor, não é uma pura iiradatu tirânica, pedante e caprichosa. Por outras palavras: não é sola voluntas capaz de, metafisicamente, ser e desejar algo hoje, mas amanhã o seu contrário e, quiçá, o seu contraditório; capaz de, legalmente, exigir o que é desprovido de racional e até impor aquilo que é irracional. Deus é, isso sim, Logos; isto é, Razão, seja em Si mesmo, seja a nível da Sua relação fecundante, num clima de bondade respeitosa, com tudo o que existe.

Assim sendo, a criativa razão humana não se opõe, sob pena de se satirizar, nem à realidade, nem àquele Deus que sustenta livremente estoutra. A razão é congénita à realidade e a Deus, e o facto de poder chegar aos sussurros d’Este a partir daquela, é – sem qualquer atavismo, antes como manifestação da dimensão mais íntima da própria pessoa humana – um dos exercícios menos presunçosos e mais libertadores para ela.

Mais: tal humana razão, na sua vinculação à verdade e ainda que unida à faculdade da imaginação que permite que se reconheça o sentido de tal verdade, precisa de ser cuidadosamente empregue, seja para dirimir o mais recto agir humano e humanizador, seja para ler e interpretar o que se estima confiadamente provir de Deus. Se assim não for, estar-se-á a trair – por um procedimento capcioso que, curiosamente, não lograria furtar-se a ter a sua norma na própria razão –, quer, cosmicamente, a natureza humana, quer, metafisicamente, a essência divina que é Amor.

Por outras palavras: a crença religiosa cristã não vai contra a razão, embora, dando o devido valor às evidências recolhidas por esta, esteja capacitada, também pela mesmíssima razão, para ir mais além desta enquanto tomada de modo isolado. Eis, aqui, outra forma de se falar das razões do coração que, evocadas por Blaise Pascal na senda dos “Capita Theologica” (c. 632 d.C.) do já nomeado Máximo o Confessor, não deixam de ser razões, nem se reduzem a qualquer sentimentalismo, embora sejam desconhecidas pela razão.

Note-se que tal razão não se reduz à já de si hesitante esfera do cientismo, nem sequer ao anarquismo voluntarista, empirista e relativista que – defendendo as verdades a si convenientes, mas recusando a verdade em si – também medra nas sombras dos dissimulados humani(tar)ismo meramente afectivos e/ou intelectuais impotentes. Ela, não aceitando desconhecer a amplitude e a profundidade da realidade, requer ser empregue rectamente num alargar de horizontes.

Se isso ocorrer, essa razão permite que se chegue, em segurança, a inquebrantáveis elementos susceptíveis de serem reconhecidos como valiosos pelo simples exercício dessa mesma razão. Entre esses elementos, há dois esteios axiais – basilares para uma sã orientação e ordenação humana mais universal – ao redor dos quais se movem as palavras de Bento XVI. De um lado, aquela liberdade religiosa que, baseada na especificidade da mundividência cristã e cunhada primigenamente por Tertuliano de Cartago no seu “Apologeticum” (c. 212 d.C.), é um direito humano fundamental. Do outro lado, a separação da autoridade política e religiosa.

Quando bem assimilado e entendido, o brilhante e iluminador discurso de Regensburg é um sonante hino à razão humana. E não só: ele é, inseparavelmente, um penetrante e até dramático aviso acerca das custosas consequências da rejeição intencional das evidências da verdade aí apontadas. Estas consequências são várias, mas há uma que, sendo tão capital, sobressai entre as demais, qual estrela cadente num céu escuro. A saber: toda e qualquer violência promovida, a qualquer nível, para impor uma religião, ou até a ausência desta, é linearmente irracional e, no caso das verdadeiras tradições religiosas que evocam ao Deus que é Deus, absolutamente indigna destas.

Tentando não fazer referência à violência – essa triste divindade dos misantropos –, é possível recompor o antes dito. Em concreto: a fé, a razão e a paz autêntica – que é sempre a justiça a brotar do amor compassivo – precisam de estar juntas numa harmonia que é o Logos feito visível no logos da palavra e da acção. Uma harmonia íntegra e integral que se vive e se dá a viver através dela mesma, em vez de ser imposta impiedosamente por pressões psicológicas e/ou bélicas – tal como o Cristianismo logrou assumir ao regressar ao Fundamento dos seus fundamentos, através dos escombros, outrora obsidiados, da modernidade e da hoje já superada pós-modernidade.

Nada de sermos ingénuos quanto ao facto de que a verdade, sobretudo quando dita cortando caminho pelo meio das mais comuns censuras e novíssimas inquisições, dói. Bento XVI foi imensamente cauteloso e judicioso nas francas asserções que apontou com extrema delicadeza e até com algum humor, inclusive quando fez breves, mas incisivas, observações histórico-literárias àquela realidade cujo nome tantas vezes não se quer pronunciar – o islão. Com isto em consideração, que tanta crueldade e irracionalidade patológicas tenham brotado de diversos Molochs modernos, foi menos uma mera contingência paradoxal e mais, muito mais, um sinal da sentida verdade dita por aquele. Foi mais uma evidência de que era preciso, e ainda é preciso, dar desvelada atenção a essa irrestrita verdade.

Querer ignorar ou distorcer o que acabou de ser apontado no parágrafo precedente, é perfeitamente sintomático daquela superficialidade vácua e periférica que existe em alguns âmbitos sociais ocidentais coevos. Daquele simplismo anárquico que desconhece o que é a firmeza das rectas convicções conformadas com a objectividade, antes se apoia, e porventura compraz, no polimorfo dilacerar de quem diverge dos gostos subjectivos feitos imperativos indeclináveis.

Sabemos bem, e as evidências têm-se multiplicado nesse sentido, que uma tal ligeireza “politicamente (in)correcta” já é perfeitamente impiedosa e cruel em si mesma. Porém, ela pode tornar-se letal quando quiser colocar deliberadamente de lado aquele Deus que, sendo a Verdade porquanto Amor, não é nem o maior enganador, e nem tão pouco mente, pois em Si não há qualquer fragmentação, suscitadora de malignos ímpetos de espoliação, entre o que sabe e o que imagina. Aquele Deus que não desconfia de nós, nem é um nosso rival, já que, sem requerer de nós uma subjugação acrítica e assustada, nos oferece gratuitamente um livre-arbítrio que, sendo a garantia de que antes de toda a palavra (da Palavra) há uma Presença, nos permite decidir e amar na consumação daquela única liberdade que é o alento da alegria.

Na verdade, esse Deus-Amor, sendo a fonte de toda a verdade genuína, é a garantia por antonomásia de que aquilo que é dito e feito a todos os níveis humanos, pode vir a ser capaz de ser significativo para o ser humano e a humanidade; para a cultura e as culturas; para a civilização e as civilizações; para o querer presente e a intenção futura. Assim, esta capacidade só é logrável se os, quiçá instáveis, trilhos das ousadas aventuras do pensamento, da investigação e da acção forem marcados pela conjugação paciente dos conhecimentos provindos da ciência, da filosofia e, evidentemente, daquela sã teologia que considera sinceramente tanto a Theos como o logos. Ou seja, daquela teologia que não anda ao ritmo, nem de esporádicas e passageiras modas estéticas, nem das inspirações logarítmicas das musas de Plutão, nem, enfim, das demandas de utopias feitas atopias.

Tudo isto está bem visível no discurso magistral e convictamente intelectual de Bento XVI. Um discurso que é uma inegável e preciosa obra de arte, intemporal porquanto resolutamente focada no seu presente, de teologia da história e de evocação da Europa, e da civilização dela surgida, não como um lugar ou uma cultura, mas, justamente, como uma história. Uma história feliz e gratamente prenhe de ciência, filosofia e teologia.

Discurso intelectual, sim, decididamente, porquanto, tal como foi dito mais acima, também é na esfera intelectual que, por muitas e maiores razões, se encontram as mais frondosas raízes clarificadoras do que precisa de ser anunciado e denunciado; acolhido e rejeitado. É aí que se pode novamente encontrar racionalmente a verdade objectiva, amá-la e viver de acordo com ela, excluindo-se, com convicta resolução, todos os seus defraudantes sucedâneos.

Há 15 anos, a comovedora lição de Regensburg, numa suma de exemplos de odio ad personam, mereceu epítetos como “inoportuna”, “ofensiva”, “insensível”, “odiosa”, “vilipendiadora”. etc. Mesmo em Portugal um famoso dawaista escreveu, em tons que roçam o ameaçador, que Bento XVI se esquecera que «a cobra / se solta por muito pouco». Afortunadamente, um ano depois, e embora com deliberadas ambiguidades e dificuldades mal dissimuladas, 138 académicos islâmicos vieram agradecer àquele o seu discurso. E fizeram-no através de um documento que, sintomaticamente, não foi demonizado pelos intelectualmente narcisistas e funestos “pensadores”, “fazedores de opinião” e “guerreiros de justiça social” que então haviam veiculado aqueles adjectivos negativistas e possivelmente xenófobos.

Hoje, 15 anos passados, incumbe-nos urgentemente recordar, meditar e assumir a transparente lição daquele discurso de 12 de Setembro de 2006. É certamente isso que, igualmente a partir do documento exarado pelos aduzidos estudiosos maometanos, tem feito o actual Papa Francisco. Efectivamente, tudo indica que também é à luz daquela palestra de Bento XVI que Francisco pondera os seus, tão discernidos quanto arrebatados, passos evangélicos e apostólicos a nível inter-religioso. Passos patentes, por exemplo, no “Documento da Fraternidade Humana para a Paz e Coexistência Mundial” e na encíclica “Fratelli tutti”. Passos dados, obviamente, não para ficar pelos mesmos, numa qualquer caminhada amorfa sem fim, antes para lograr descerrar as consciências, a nível mundial, para o que emerge daquela tão generosa e criteriosa palestra.

Um dia, se Bento XVI não for intencional e ostensivamente apagado da memória humana, todos agradeceremos a paterna coragem e desmedida valia do seu discurso em Regensburg. A verdade, se não for banida, garanti-lo-á.