No meio do bruá quotidiano quase que o pequeno milagre passou despercebido: a NATO encontrou um coração novo e despertou revigorada. Ao seu secretário-geral, Jens Stoltenberg, só faltou a farda e o palanque para encarnar o papel de descarnador de almas, tal o fogo nos olhos com que anunciava a boa nova ao mundo.

O preço desse novo coração foi a conspurcação moral da Suécia e da Finlândia, futuros países-membro que, segundo o Freedom in the World de 2019 (último ano em que o mundo ainda parecia fazer sentido), levavam o ouro e o bronze no pódio da qualidade da democracia (Portugal estava num honroso 13º lugar). Pois quiseram os “steakholders” desse “clube de democracias”, como alguém lhe chamou com inexcedível sentido de humor, que haja juizinho no que toca ao PKK, movimento independentista armado da nação curda (30 milhões de pessoas que em 1923 perderam terra e Estado na secretaria). Nos termos da transacção, Suécia (#1) e Finlândia (#3), que eram exemplares também por terem sido dos poucos a apoiarem e a acolherem os curdos, estão agora obrigados a vê-los conforme a Turquia (#157) diz que eles são: terroristas.

É claro que não há frase que fique de voltas trocadas por se lhe trocar “russos” por “turcos” e “ucranianos” por “curdos”, e é claro que em “terrorista” cabe tudo e um par de botas, desde o ISIS ao Nelson Mandela, mas o totobola ficou assim: a Suécia e a Finlândia tiveram de rebolar na lama para se precaverem do trágico fado ucraniano. É verdade que parece contrato lavrado em boate, mas a beleza dos pactos com o diabo é que nem sequer é preciso cuidar das aparências.

Também a União Europeia dá sinais de andar a tomar calcitrine, pois andou dez anos a desenhar círculos no chão sempre que se falava de desinformação, mas, mal começou a guerra, baniu os meios de comunicação russos com um convincente estalar de dedos. Essa eficácia, a lembrar a simpática Arábia Saudita (#199) se não mesmo a tenebrosa Coreia do Norte (#204), inspirou uma vaga de pensadores que clamam pelo alargamento da UE — pensadores tão perspicazes como aqueles que não viram chegar a crise financeira assim como não viram problema algum em depender da Rússia (#175) até para aquecer a sopa. Os pretendentes favoritos são a Sérvia (#91) e a Ucrânia (#108), direitinhos para o dinâmico Grupo de Visigrado, onde a Polónia (#57), a Hungria (#86), e outros, demonstram diariamente à Europa que a verdadeira democracia dispensa essas mariquices de imprensa livre e tribunais independentes. Certamente que essa nova UE açucarada, com menos pruridos civilizacionais e mais business friendly, ainda mais será o reduto de estabilidade e de democracia de que nos orgulhamos.

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Mas deixemos o cinzento da política para voltarmos ao mundo militar, onde até os comboios chegam a horas, e a prová-lo está a previdência da NATO que soube perceber que se a Rússia anda de calças na mão na Ucrânia então não chega para o colosso renascido, que está em expansão, e em vias de setuplicar efectivos e multiplicar o investimento bélico — em suma, a NATO está aí pronta e a bombar. Por isso, tratou de nos assegurar um futuro radioso enviando também um sinal ao vizinho, a China (#191), dizendo-lhe que não a vê (para já) como um adversário mas que está no radar da aliança.

E é aqui que o enredo atinge o clímax, pois quando a NATO, a aliança militar, nos dedica uma palavra, tomamos nota. Certamente que os chineses deitarão sentido aos bons conselhos dos ocidentais de coração puro, esses que sempre têm a boca nos altos valores e o polegar a roçar no indicador. E que mais poderiam fazer essas inestimáveis raisons d’etre, a China e já agora a Rússia? Aproveitar o põe-te a pau da NATO para aumentar também os gastos em defesa? Ridículo!, pois se já é paradoxal haver tanto Ministério da Defesa por esse mundo fora quando não há um único Ministério do Ataque! Fazer do grande inimigo externo a origem de todos os males e a razão-de-ser da linha dura? Não!, pois seria enveredar pelo caminho de mais inimigos, mais armas, mais joguinhos, mais provocações, mais propaganda, mais ódio, menos diálogo, e isso só pode levar à…

Talvez, como em Farenheit 451, a guerra comece e acabe em 3 segundos. Talvez corra melhor do que o expectável e esborrache apenas a metade de cima do planeta, atenuando a mudança climática e fazendo do Norte um imenso memorial. Talvez uma futura civilização sulista organize visitas de estudo aos jardins de pedra onde em todas as lápides se lê que quando se enjeita a compaixão logo a razão soçobra. Será esse o legado dos “antigos” que se extinguiram como o primeiro pensamento da manhã.