Mais do que pessoas dotadas, fascinam-me pessoas doentes. Ou melhor, vou tentar explicar-me melhor: para mim as pessoas realmente dotadas são aquelas que, ao manifestar o seu dom, não o conseguem fazer sem que ele se mostre também como uma doença.

Se, de um lado, o dom nos faz ficar de bem com a vida, do outro, a doença recorda-nos o fim dela. Esta dicotomia está para mim sempre presente. Não consigo pensar em dons esquecendo as doenças, e não consigo pensar em doenças sem lembrá-las como possíveis dons. Como acredito na Bíblia, acredito num Universo que, tendo começado perfeito (no capítulo 1 e 2 do livro do Génesis), rapidamente se viu no meio de problemas (logo no capítulo 3). Por isso, não nego a perfeição, a que todos almejamos, sejamos crentes ou não, mas, de facto, são os problemas os nossos companheiros mais presentes e credíveis. “Problemas no Paraíso”, como diria o bom Slavoj Zizek, sem qualquer vestígio de religião.

Esta dicotomia pode aplicar-se praticamente a qualquer coisa. Por exemplo, à pessoa com quem casámos. Ela é para nós o que mais ninguém pode ser, mas, como é calculável, também será quem mais nos tira do sério—ela é o dom e ela é a doença. Amor que é amor é dom e é doença. Isto aplica-se também às nossas vocações. Não paramos enquanto não fazemos o que desejamos mas também endoidecemos nesse processo—é o dom e é a doença. Vivemos para concretizar algo mas vamos morrendo nisso também.

Valorizar o dom é fácil. Ninguém deseja a doença, certo? Mas talvez a resposta não seja tão linear. E dou um exemplo tosco, usando o caso da arte que me impressiona. Quando me sinto impressionado, não sou indiferente ao aspecto do dom, é claro—mas o que realmente me intriga é o aspecto da doença. Os artistas que me conquistam não são os que, por uma questão de dom, elaboram obras de perfeição. Conquista-me mais o que nem a obra chega, conquista-me a tentativa falhada ou, mesmo que atingida, estragada por algo que, no meio do processo, a desfigurou noutra coisa qualquer. Não nego o dom mas, sobretudo, encanta-me a doença.

Os dotados tendem a ser chatos. São jockeys perfeitos dos seus cavalos, são titeriteiros de técnicas em trote, são déspotas domiciliários. Não há nada que os atropele, não há nada que os derrube, não há nada que os desmascare. Manifestam-se artisticamente restituindo ao fruto proibido a trinca que lhe foi desferida. Fazem-nos acreditar no Éden quando estamos todos do lado de fora. A habilidade dos dotados sempre me oprimiu. Nem sequer lhe encontro um sentido ou um significado. O dotado nada louva além de si mesmo. Talvez por isso, Chesterton dizia que “o bom músico adora ser músico, o músico mau adora a música”.

Já a doença torna o dom tolerável. A pessoa que, amando o que faz, o faz doentiamente, essa sim, convence-me. As suas obras são uma afirmação dupla de vida e de morte, de viço e de vacilação. O dotado doente quando cria, cria em crise e é daí que vem o seu génio. Ele não se sobrepõe a ninguém porque, ao exibir o seu dom, denuncia as suas próprias derrotas. Os triunfos dos dotados doentes são também diagnósticos: não queremos propriamente ser fãs deles, queremos participar do tratamento de que eles precisam. As obras deles não são consumos para nós, são consultas.

A nossa existência deste lado da ressurreição é demasiado breve para a gastarmos junto de dotados sem doenças. O dom, em si, devia levar-nos ao doador original e não fazer-nos parar naquele que apenas o recebeu. O dotado, quando ocultando as suas doenças, convence-nos de uma mentira: a sua habilidade pertence-lhe naturalmente. Mas a verdade é que nada nos pertence naturalmente e, nessa medida, quem tem na sua doença o seu dom, tem uma missão. É até um missionário. Foi a essa religião que me converti.

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