É verdade que, em nome da religião, se cometeram as mais inacreditáveis atrocidades. E é verdade que leituras fundamentalistas de textos de uma simbologia inacreditável e de uma clarividência comovente permitiram que, a pretexto do bem, tantos tivessem feito tão mal a tantas pessoas que, perversamente, encaminharam para a obscuridade. Mas, à parte delas, a religiosidade faz diferença. Até porque, com ela, nos chega uma ideia de mistério a ligar-nos ao maravilhoso e um apelo à pequenez humana que, tão depressa, nos conduz à humildade como, ao mesmo tempo, à sagacidade e ao pensamento. Que fazem falta a um mundo (às vezes, tão estupidamente “científico”).

Hoje, basta que alguém que fale se muna de um “estudo”, ou que jogue sobre nós percentagens, números (ou, mais recentemente, biologia nervosa) e todos parecemos estar compelidos a pedir desculpa não só por pensar como, até, por perguntar. Como se o bem que a ciência trouxe ao mundo das pessoas estivesse, ele também, tão doente com tantos exercícios de vaidade e de fundamentalismo como o discurso religioso quando não percebeu que a fé é um exercício de conhecimento; amigo da dúvida. E não tanto aquilo que veda o seu encalço.

Por isso mesmo, reagi sempre mal quando fui vendo, ao longo da minha vida, apoiados numa cientificidade “manhosa”, alguns “criminalistas” perguntarem se a maldade é inata ou adquirida. E pior ainda fui reagindo quando os via, (sempre barricados em “estudos”) a afirmar que há quem diga que se nasce bom e há quem diga que se nasça mau. Mas a encolherem-se, cobardemente, em nome daquilo que alegavam como sendo a imparcialidade da ciência, quando se tratava de se fazer uma síntese. E, em função dela, de construírem uma opinião.

Eu acho que faria diferença se muitas destas pessoas tão supostamente imparciais passassem por uma unidade de prematuros. E tivessem a visão (sublime!) de pessoas, por vezes, de quinhentas gramas agarradas à vida, e de muitas outras pessoas, começando pelos seus pais e continuando pelas equipas que lutam para que eles permaneçam vivas, para que se perceba que, diante da vida e da morte, considerando a forma como nos confiamos e o modo como nos damos, somos, inequivocamente, bons. Todos nascemos bons! E a maldade nasce, afinal, dos apelos ao apego que, fosse pelo que fosse, foram ficando por satisfazer. O ódio é, no limite da maldade, um grito de triunfo sobre a inveja de morte por todo o amor que os outros têm e que quem odeia não.

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Mas há uma espécie de patamar, antes da maldade propriamente dita, que faz com que muitos pais sofram imenso. E faz, sobretudo, com que não entendam porque motivo as pessoas a quem deram o melhor do seu amor se terão tornado tão egoístas. Às vezes, tão frias. E, afinal, tão “más”. De que forma, perguntam-se, é que filhos tão desmedidamente amados se tornam, tantas vezes, tão “maus”? O que é que os deixa a meio caminho entre a bondade e a maldade?

Quando os pais guardam o melhor de si, o melhor do seu tempo, o melhor de todos os alimentos ou, simplesmente, o melhor do melhor para os seus filhos isso é bondade. Quando os pais – mesmo quando nos advertem: “Não é por ser meu filho” – se deslumbram com a inteligência dos filhos, com as suas graças ou o seu humor, ou com o furor da sua memória ou do seu vocabulário, põem os filhos à frente de tudo. Unicamente, porque os amam. Quando os pais dão aos filhos as oportunidades que eles próprios não tiveram ou, simplesmente, que desperdiçaram, e quase se
encolhem ou mesmo se anulam diante da destreza com o inglês ou com as novas tecnologias que eles acabam por ter, põem os filhos à sua frente; porque os admiram. Ou quando prolongam casamentos moribundos “por causa dos filhos” estarão, muitas vezes, a ser “batoteiros”, é verdade que sim. Mas noutras tantas não. Porque entendem que, em nome do amor, se devem resignar a sacrifícios para que os filhos cresçam melhor. Mais despreocupados. E (quem dera que fosse tão simples!) mais felizes.

Serem “os mais bonitos”, “os mais inteligentes” ou os maiores motivos de orgulho dos pais faz com que, todos nós, trabalhemos sem querer – mas com afinco! – para o egoísmo dos nossos filhos. Porque eles estão sempre primeiro. Porque pessoas amadas se sentem, quase por inerência, “primeiras figuras”. E porque passamos a vida a dar-lhes a entender que, ao pé de nós, eles parecem saber mais coisas. Serão o melhor de nós próprios. E, por isso, inequivocamente, melhores do que nós. Mas não é verdade que seja exactamente assim. Os nossos filhos não sabem (em relação ao essencial) mais do que nós. Estão, em muitos momentos, longe de serem melhores do que nós. E comparados connosco não são sempre pessoas mais bonitas. São pequeninos! E, como todos nós, precisam de muitíssimo tempo (e de quem os ajude) a serem melhores.

Passamos, pois, a vida a acarinhar nos nossos filhos muita “publicidade enganosa”. E acanhamo-nos demais, seja qual for a idade que tenham, quando se trata de os corrigir. E, já agora, de lhes exigir que sejam melhores. Imaginamos que a sensibilidade, a gratidão e, até, a palavra não se educam. Parecem ter de resultar, “naturalmente”, como consequência daquilo que lhes damos. E vamos “registando”, num silêncio surpreso e dorido, as vezes em que eles, pelo seu egoísmo, nos desapontam, nos decepcionam e nos magoam. Como se cuidarem mais dos seus interesses do que cuidam de nós fosse um “é assim”. Um “tem que ser”. Ao pé do qual fosse de esperar que o amor dos pais não pudesse senão ser “incondicional”. E nada com que os nossos filhos nos magoem com o seu egoísmo lhes tirasse “pontos” no nosso amor de pais. Ou nada fizesse com que, aos bocadinhos, eles pudessem ir “deixando de ser” nossos filhos.

Convenhamos que, em muitas circunstâncias, talvez não os tenhamos amado e conhecido à medida daquilo que eles mereciam. Acontece com todos. Mas sentirmo-nos quase amedrontados quando se trata de lhes proibir o egoísmo é o maior (e talvez o mais colossal) erro de todos os pais. Que nos leva, a nós, também (quais criminalistas precipitados), a imaginar que, mesmo considerando os nossos filhos, uns “nascem” bons e outros nascem… egoístas. Como se muito pouco tivesse a ver com a relação que construímos com eles. E, pior, como se houvesse um “já não vou a tempo” a partir do qual se tornasse tarde emendarmos caminho e educá-los para a bondade. Como eles precisam. E nós, também.

É verdade que vivemos um tempo em que as pessoas “mal amadas” se refugiam, como mais ninguém, na auto-estima. E que nunca se viu, como agora, tantos pais a justificar alguma má educação dos seus filhos com a sua “personalidade vincada” ou com o modo como eles são “uns líderes natos” (talvez porque “mandem” mais nos pais do que aquilo que deviam). Os nossos filhos têm colo. São sonhados por nós, todos os dias. Amamo-los, desmedidamente. E têm qualidades incríveis que nos levam, com toda a legitimidade, ao deslumbramento. Mas precisam de ser educados para a bondade. Para que conquistem aquilo que a religião trouxe à Humanidade: a liberdade de irem dos sentimentos à linguagem simbólica; a educação para o maravilhoso como antídoto do sofrimento; e a “obrigação” de se sentirem pequeninos para que não percam a integridade que só o amor lhes dá; sem que isso lhes tire a humildade e a sagacidade. E precisam da seriedade das nossas regras para que conquistem aquilo que a ciência nos trouxe: o desafio de perguntar; a volúpia de conjecturar; a audácia de perspectivar; a obrigação de duvidar; e a coragem de ligar e religar e, juntando isso ao que se sente, de pensar.

Do que eles não precisam é que, com todo o nosso amor, os ajudemos a que se tornem egoístas. E, por isso mesmo, vaidosos. Porque, por mais que o façamos acidentalmente e por amor, estamos a torná-los um bocadinho “más pessoas”. E nem eles ganham nem nós merecemos isso. Afinal, é o bem que se exige que nos leva da sensibilidade à claridade.