Jean-Claude Juncker, com aquela maladresse que lhe é tão própria, confessou esta semana à revista alemã Der Spiegel que “não conseguia compreender Tsipras”. Devo dizer que não me surpreende. O primeiro-ministro grego não tem as mesmas motivações nem o mesmo quadro de referências não apenas de Juncker, mas de todos os que, da direita democrática à esquerda social-democrata, construíram a Europa nos últimos 60 anos. O seu mundo é outro, e não apenas por ser grego, pois o que Tsipras fez toda a vida foi combater o modelo económico, social e político da União Europeia.

Como às vezes sucede na história das nações, há figuras políticas que pareciam destinadas a nunca ultrapassarem a condição de serem apenas vozes incómodas, ou contestatárias, mas que uma excepcional conjugação de circunstâncias projecta para a ribalta e para lugares de poder. Tsipras, tal como Varoufakis, pode ser apenas mais uma dessas figuras.

De facto, lembrava um artigo recente do diário grego Ekathimerini, o primeiro-ministro grego é alguém que parece querer abusar da sua sorte. Se o velho sistema político grego, corrupto, doente e ineficaz, não tivesse colapsado na sequência da crise financeira aberta em 2008, por muito talentoso que Tsipras fosse nunca conseguiria levar o seu pequeno partido da esquerda radical, que antes valia apenas 3% dos votos, até aos 36% que lhe permitiram estar hoje no poder. Nesse artigo recomendava-se que o jovem primeiro-ministro não tentasse abusar da sorte, pois ela de pouco lhe serve no tipo de negociações que tem tido pela frente.

Habitualmente, a forma desastrada como, ao longo dos últimos cinco meses, a dupla Tsipras-Varoufakis tem lidado com os parceiros europeus, alienando todos os potenciais aliados e destruindo toda a possível boa vontade existente (e se alguém até abusou dessa boa vontade, esse alguém foi Jean Claude Juncker), tem sido atribuída a uma mistura de falta de experiência e de arrogância intelectual. É uma explicação insuficiente, que não compreende a natureza profunda de uma organização política como o Syriza.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os radicais gregos não desejam apenas combater a austeridade – eles querem é tirar partido do descontentamento provocado pela austeridade para promoverem um tipo de sociedade radicalmente diferente da nossa. Eles não são reformistas ingénuos, são revolucionários que querem aparecer como pragmáticos. Tal como Álvaro Cunhal em 1975, eles não querem uma “democracia burguesa” – só são diferentes de Cunhal porque não sabem muito bem o que querem, pois longe vão os tempos da União Soviética.

A biografia do actual primeiro-ministro grego devia ter-nos alertado para o que ele realmente deseja. Quando entrou na política, no final dos anos 1980, fê-lo aderindo a um partido comunista pró-soviético na exacta altura em que o Muro de Berlim estava a cair. Quando deixou esse partido, não o fez por desilusão com o comunismo, mas para se juntar a uma força política porventura ainda mais radical. A sua vida foi passada nesses meios partidários e entre militantes associativos e sindicais. Umas vezes fez figura de moderado, outras de radical, navegando com habilidade por entre as múltiplas facções de uma extrema-esquerda grega permanentemente marcada por cisões e reconfigurações. Mesmo assim não há dúvida que encontrou o tom certo para cavalgar a onda do descontentamento popular, o que até não fi grande obra: Juncker disse-lhe recentemente que, se ele próprio tivesse concorrido a umas eleições com o mesmo tipo de promessas que o Syriza fez, não teria ficado pelos 36% dos votos, teria chegado aos 80%.

Varoufakis tem um percurso pessoal diferente, mas que também não nos devia criar ilusões. Ele é apenas mais um dos milhares de intelectuais radicalizados que têm ocupado, em todo o mundo desenvolvido, os departamentos de ciências sociais das universidades e utilizado essas plataformas para promoverem uma agenda política anti-sistema. Chomsky não é hoje a excepção, é antes a regra um pouco por todo o lado. Trata-se de gente que, apresentando-se como académicos, não hesitam ser aparecer como figuras de proa nos fóruns da “alter-mundialização” (como o nosso Boaventura Sousa Santos) ou em eventos como um “festival subversivo” (como fez Varoufakis no Verão de 2013, aí fazendo as suas confissões na qualidade de “marxista errático”). O piano, o apartamento com vista para a Acrópole e o cachecol da Burberry apenas ajudam a compor a imagem do intelectual “esquerda caviar”, uma imagem imensamente conveniente quando a maioria do eleitorado já não é composta por descamisados, mas sim por uma classe média que também sonha com o piano, o apartamento e o cachecol.

O que surpreendeu Tsipras e Varoufakis depois de terem chegado ao poder (com a ajuda da direita nacionalista e xenófoba, convém não esquecer), foi terem verificado que não bastava invocarem o seu “mandato democrático” para assustarem governantes também eles mandatos pelos seus eleitorados. E o que os surpreendeu ainda mais foi chocarem com a indiferença, quando não com a hostilidade, dos outros povos europeus em nome dos quais pretendiam e pretendem estar a falar.

Por sua vez, o que surpreendeu os outros dirigentes europeus foi encontrarem pela frente líderes que não se limitavam a fazer críticas razoáveis a um processo de resgate cheio de erros e equívocos, mas que pretendiam instaurar na Grécia uma espécie de versão moderna do leninista “socialismo num só país”, só que com a diferença de agora esse novo “paraíso na terra” ser financiado pelos contribuintes do resto da Europa.

Não se pense que estou a exagerar. Olhe-se, por exemplo, para o “non-papper” de propostas gregas que foi enviado para Bruxelas a fingir que Atenas tinha alternativas às políticas de contenção orçamental. Ou leia-se a intervenção que Varoufakis leu no último Eurogrupo e, logo a seguir, publicou no seu blogue pessoal. Não vou entrar no detalhe desses dois documentos, onde há muitos parágrafos que até parecem razoáveis. Vou apenas dar um ou dois exemplos do que neles é significativo. Assim, num país que precisa desesperadamente de investimento estrangeiro e já tem uma das taxas de IRC mais elevadas da Europa, a “alternativa” do Syriza é aumentar ainda mais esse imposto. Mais: num país com um mercado laboral esclerosado e um Estado gargantuesco e ineficiente, Varoufakis propõe que se combata a existência de fraudes como o pagamento de meio salário mínimo a trabalhadores que trabalham a tempo inteiro não com mais fiscalização, mas com mais contratação colectiva.

No final de Fevereiro, Tsipras e o seu governo foram obrigados a aceitar o prolongamento do programa de assistência que antes tinham abjurado. Na altura pouco mais conseguiram do que mudar o nome à toika, que passou a chamar-se “as instituições antes designadas como troika”. Com isso ganharam-se quatro meses para negociar, e nesses quatro meses nada de substancial se negociou, como o último Eurogrupo comprovou. Entretanto tudo o resto ficou pior: a economia, que tinha recomeçado a crescer, voltou à recessão; a colecta fiscal caiu; a fuga de capitais aumentou; o Estado voltou a deixar de pagar algumas das suas contas; e se alguma confiança ainda existia as partes, ela foi destruída.

Pior: o Syriza, ao ocupar o poder e ao colocar os seus homens nos lugares chave, está a mostrar que não é menos clientelar do que os velhos partidos gregos. Um bom exemplo disso é a forma como reabriram a televisão pública e a transformaram num instrumento de propaganda. Não que os outros não tivessem antes feito o mesmo – a diferença, hoje, é que já ameaçam os operadores privados com a cassação das suas licenças, uma ameaça “à venezuelana”.

É por tudo isto que não creio que se devam alimentar expectativas relativamente à cimeira europeia de segunda-feira. Até pode ser que aí se descubra um qualquer compromisso de última hora que, por exemplo, prolongue o prazo de validade do ajuda até ao final do ano. Mas se isso suceder, a única garantia que temos é que viveremos de novo este sufoco daqui por mais uns meses.

A Grécia do Syriza no euro será sempre uma crise permanente, pois aquele partido não é apenas um PS um pouco mais radical – o Syriza é uma coligação de radicais que são convictamente contra o que os menos sofisticados, ou menos dissimulados, designam como “capitalismo” – basta ver o discurso de alguns dos manifestantes que têm saído à rua em apoio do governo. Mais: ao mesmo tempo, muitos na Grécia começam a sentir que as suas promessas foram enganadoras e que a sua agenda pode acabar numa catástrofe, e também esses já começaram a sair à rua, porque não se imaginam fora do euro ou afastarem-se da forma de vida democrática e livre da União Europeia.

Há momentos em que só temos a ganhar em acabar com situações equívocas, e este é um desses momentos. Se os gregos querem continuar o seu choradinho, que o façam fora do euro e sem as ajudas que, mal ou bem, os salvaram da asfixia. Se, pelo contrário, querem ser levados a sério, então enfrentem sem ambiguidades o irrealismo que os levou a fazerem uma “escolha democrática” com premissas que não dependiam deles nem do seu governo, antes do dinheiro dos outros contribuintes europeus.

Não é apenas a paciência de Schauble, de Hollande, de Merkel ou de Juncker que já se esgotou. É também a nossa.