Passei uma boa parte dos tempos livres do mês de Janeiro a ler livros sobre o populismo. As razões são óbvias: o resultado de André Ventura nas eleições presidenciais e o suicídio político de Donald Trump, um suicídio quase a pedido, com os seus danos colaterais bem reais. Há, é claro, um mundo a separar Ventura e Trump, mas uma coisa é certa: ambos são populistas e ambos são populistas em regimes que se pretendem não-populistas. Mesmo que Trump tenha ocupado o poder, não criou – não pôde, nem presumivelmente quis criar — um regime populista, a distinguir de um movimento populista, que, esse sim, fomentou, e cujas franjas mais radicais, no seguimento de um discurso seu, grotescamente invadiram o Capitólio, a lembrar as lutas entre populares e optimates em Roma no fim da República.

Se Trump tinha de acabar assim, como dizem aqueles que juram conhecer todas as dobrinhas da sua substância individual na perfeição, é outra coisa. O facto é que assim acabou, e, no que há de essencial, exclusivamente por culpa própria. Depois de uma desenfreada e nunca vista perseguição que durou todo o seu mandato, os democratas podem enfim pôr Nancy Pelosi no papel do Professor Van Helsing e espetar um pau no coração de Trump, no seu caixão em Mar-a-Lago, deixando ali, pelo sim pelo não, “uma flor de alho benta e um fragmento de hóstia, a fim de, para sempre, lhe impedir o regresso”.

Seja como for, o espectro do populismo invadiu as discussões contemporâneas e faz eco àquilo que alguém chamou a “atmosfera populista” que tomou conta das nossas sociedades. Tratando-se de um termo equívoco, que tanto pode ser utilizado de forma positiva – basta lembrar que os artistas apoiados pelo New Deal de F. D. Roosevelt, como Aaron Copland, eram vistos como “populistas”, já que, ao contrário de, por exemplo, Schönberg, o “povo” os podia compreender — como negativa – não vale a pena dar exemplos –, convém fixar algumas ideias, mesmo que estas fiquem necessariamente muito aquém de uma definição rigorosa. Dito de uma forma simples: o que é que vale a pena comprar naqueles que estudam o populismo?

Cada um, é claro, comprará o que quiser. O que segue é uma lista propositadamente telegráfica de ideias apanhadas em várias prateleiras que eu compro com graus diversos de confiança, algumas delas simples banalidades de base sem grande subtileza. O bom método para lidar com conceitos irremediavelmente equívocos é procurar descobrir as peças de um puzzle, sem ambicionar que elas encaixem perfeitamente umas nas outras. Nunca encaixam perfeitamente.

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Gradualismo. O populismo é uma questão de grau. Há regimes democráticos mais ou menos populistas. Não há regimes bacteriologicamente puros neste capítulo (daí ter antes falado em “regimes que se pretendem não-populistas”).

Um fenómeno democrático. Autores diversos caracterizam o populismo como “a periferia interna da democracia” ou como “uma forma limite do projecto democrático”. Não é à democracia que o populismo se opõe: é ao liberalismo. O populismo representa a radicalização da democracia contra o liberalismo.

Imediatismo, decisionismo e ausência de deliberação. O populismo vive da impaciência, da urgência da resposta e da decisão, da comunicação rápida, praticamente instantânea. Daí a quase ausência do espaço deliberativo, com a sua temporalidade própria. Sem confundir populismo e autoritarismo, qualquer populista poderia fazer suas as palavras de Donoso Cortés, na sua crítica da burguesia, a “classe discutidora” que, pressionada a decidir-se entre Cristo e Barrabás, logo proporia nomear uma comissão de investigação à qual caberia a escolha.

Indiferença da oposição esquerda/direita. O populismo, em si mesmo, não é de esquerda nem de direita. Pode investir-se numa ou noutra, a partir do momento em que o movimento em direcção à radicalização da democracia, à ruptura com as elites liberais, tem lugar. Não é por acaso, de resto, que as defesas mais elaboradas do populismo vêm da esquerda, e de uma esquerda que muito se apoia num pensador que certamente a ela não pertence, Carl Schmitt.

Paixões, emoções e afectos. O populismo traz invariavelmente para a boca de cena as paixões, as emoções e os afectos, como se prefira dizer. Em primeiro lugar as emoções daqueles que procuram um líder populista, um líder que represente maximamente, e magicamente sem distância, quase fusionalmente, o “povo” na sua luta contra as “elites”. São normalmente emoções de abandono, derrelição, medo e frustração. E, em segundo lugar, as emoções que o populismo oferece como resposta: aquelas que resultam, em larga medida, do sentimento de uma pertença a um grupo que se ignorava e que finalmente adquire voz. O populismo é uma maneira de fazer sentido de um mundo que não parece fazer sentido. Se se quiser ver as coisas em termos de oferta e de procura, o populismo oferece aquilo que as pessoas, em certos momentos, procuram. Se não houvesse procura, não haveria, pura e simplesmente, oferta. Ou, se se preferir uma outra linguagem, o populismo é sempre sintoma de algo. Não há fumo sem fogo. Grandes erros advêm de não se perceber este facto básico.

Recalcamento do populismo democrático pelo liberalismo e retorno do recalcado. O liberalismo, herdeiro de Tocqueville e Stuart Mill, tende a recalcar o populismo natural à democracia. Como vários autores sublinham, o medo do descontrole da democracia, resultado do trauma do advento do nazismo, conduziu as democracias liberais a adoptarem instrumentos que inclinam a restringir o escopo da democracia e a dar mais peso à elite liberal. A própria criação da União Europeia é um exemplo dessa prática. Acontece que o que é recalcado tem a mania de voltar à superfície sob uma forma ou outra. E, como as democracias liberais são democracias, ele retorna infalivelmente.

Reacção anti-democrática ao retorno do populismo. A atitude mais catastrófica que se pode ter consiste em estabelecer o tão falado “cordão sanitário” em torno dos movimentos populistas, ou, nas versões mais fortes, em ilegalizá-los. Primeiro, porque se trata de uma reacção indiscutivelmente anti-democrática. Depois, porque assim quem sai reforçado, como é óbvio, é o próprio populismo, que encontra nesse desejo a prova mais conclusiva da sua razão de ser e da justeza dos seus propósitos. Não é preciso dar exemplos desse efeito: basta olhar à nossa volta e está tudo escrito com letras grandes. Mas a primeira razão, que é a fundamental, basta. As pessoas percebem que as reacções anti-democráticas em nome da democracia representam uma injúria à sua dignidade e sentem-nas como uma manifestação de prepotência de uma elite que as trata com autoritarismo paternal e íntimo desprezo.

Juízo político. O populismo, como coisa inteiramente distinta dos vários totalitarismos, partilha um fundo de crenças que são comuns às democracias liberais, por mais que se construa a partir da oposição entre o “povo” e as “elites” e por mais que essa oposição tenha algo de fantasmático, quando levada às últimas consequências. Resulta daí que os vários juízos políticos que os populistas defendem podem ser reconduzidos a esse fundo de crenças partilhadas. A posição populista face às democracias liberais não é a de um extraterrestre: há uma experiência comum que, por menos reflectida que possa ser, é partilhada pelos dois lados. Ver o populismo como uma simples parte maldita da nossa sociedade é, como dizia o outro, mais do que um crime, um erro, um erro que nega a própria democracia. O diálogo com o populismo faz-se apelando a esse fundo comum, o que pressupõe que se discutam as suas questões com respeito e não demonizando-as, correndo o risco de, através dessa demonização, nos demonizarmos indirectamente a nós mesmos.

Tudo isto, creio, vale para o populismo e para as reacções a este em geral. E vale certamente para o que se observou nas eleições presidenciais, no que respeita a André Ventura e aos seus adversários, alguns deles não menos populistas que o próprio. Da parte de André Ventura, não há praticamente reflexo populista algum que não tenha sido encenado. Da parte dos seus adversários mais virulentos, não há erro que não tenha sido cometido. Quando Ana Gomes e, menos ostensivamente, Marisa Matias, apelaram à ilegalização do Chega, não se prejudicaram apenas a si mesmas, o que não é em si um grande mal: puseram, pura em simplesmente, em causa a própria democracia. As questões que André Ventura coloca são deformadas pela radicalização da oposição povo/elite? Claro que são. Mas essa radicalização é precisamente a mola passional que lhe permite responder à procura emotiva do seu eleitorado, que representa uma fatia muito razoável dos portugueses. E é essa procura emotiva uma aberração maldita no corpo da nossa sociedade? Certamente que não. É sintoma de um mal-estar, e de um mal-estar real e não imaginário, saído do cérebro de Ventura, um mal-estar que não se pode, sem mais, varrer para debaixo do tapete, até porque mais se varre, mais ele alastra. A divisão nós/eles, simétrica da oposição populista entre as elites e o povo, não resolve nada. O que é preciso é, através dos juízos políticos, chegar a esse fundo de experiência comum que permite a democracia. De outro modo nega-se a democracia. O que é perfeitamente legítimo, desde que não se pretenda falar em seu nome.