Um espectro ronda o PSD. E não, não é o espectro do comunismo, como no famoso manifesto de Marx e Engels escrito em 1848 – é o espectro de Passos Coelho. Aparentemente ninguém quer ser conotado com o ainda líder do PSD, como se ele tivesse peçonha. É muito revelador do país que somos, do PSD que temos e da sem vergonha que se tornou no pão nosso de cada dia.

Já muitos o escreveram, vou apenas repeti-lo: a história fará justiça a Passos Coelho, como fez justiça a Mário Soares e a Ernâni Lopes depois do duro ajustamento de 1983-1985. A história, de resto, já lhe começou a fazer justiça: em nenhum outro país obrigado a enfrentar uma crise da dívida soberana o primeiro-ministro em funções conseguiu voltar a ganhar as eleições. Na Grécia o Pasok foi reduzido a um micro-partido. Em Espanha o PSOE é uma sombra do que foi. Até em França o PSF quase desapareceu. Não foi isso que sucedeu com a coligação PSD/CDS em 2015, como bem nos recordamos.

Mesmo assim, depois de umas eleições autárquicas que correram muito mal ao PSD, o seu líder entendeu atirar a toalha ao chão. É compreensível. Iam fazer-lhe – no partido, no comentariato dominado pelo PSD ressabiado e nos órgãos de informação – a vida negra. Mais: os erros de cálculo e de timing que cometeu nos últimos dois anos, depois de deixar de ser primeiro-ministro, deixavam-lhe pouca margem de manobra para se reinventar.

Até aqui entendemos. O que já não entendemos é que, de repente, na corrida à liderança do PSD, se pareça querer apagar da memória do partido e dos portugueses os últimos sete anos. Não é apenas uma vergonha de gente sem grande espinha vertebral – é um tremendo erro político. Pior: é uma rendição que, a concretizar-se, acarretará custos elevados para o país, para já não falar do próprio PSD.

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Não há nada como a frontalidade: o PS de António Costa e da geringonça rompeu com a tradição socialista. Deixou de ser anti-comunista e, sobretudo, deixou de ser anti-bloquista. É um PS que que também ele aposta no esquecimento do que foi o socialismo real que existia antes da queda do Muro de Berlim, flirta com o radicalismo utópico e anti-capitalista e está rendido ao politicamente correcto. E se hoje cria a ilusão de que se converteu ao rigor orçamental, a verdade é que isso só sucedeu depois do apertão que levou em Bruxelas com o seu primeiro esboço de orçamento de 2016 e, sobretudo, porque os ventos sopram a favor e o crescimento cria folga para umas flores. No dia do aperto – e esse dia chegará, tão certo como a Terra girar em torno do Sol – o “rigor orçamental” de Costa tenderá a ser como o “rigor orçamental” de Sócrates (se a Europa voltar a estar distraída, claro está).

No PSD devia por isso haver a claridade estratégica que parece haver no CDS de Assunção Cristas (e a sua mais recente entrevista ao DN apenas reafirma o que disse várias vezes em campanha, apesar de os jornalistas não quererem ouvir): em Portugal os eleitores terão de escolher entre uma maioria PSD/CDS ou uma maioria PS/Bloco. Tal como não é tempo para reeditar coligações PS/CDS, também não é tempo de “blocos centrais”. Escrevo isto com a frontalidade de quem muitas vezes defendeu que Portugal necessitava de um acordo alargado entre o PSD e o PS para realizar algumas reformas indispensáveis. Com estes socialistas isso não é apenas impossível – é contraproducente.

De repente todos acharam que o PS de Costa saído destas autárquicas está como que condenado a ter a maioria absoluta nas próximas legislativas. Desenganem-se: isso está longe de ser uma fatalidade. Os socialistas, mesmo considerando as coligações, somaram 39% dos votos. Faltam pelo menos cinco pontos percentuais para a maioria absoluta. E isto numas eleições em que o Bloco se ficou pelos 3,3%, muito abaixo do que deverá ter em legislativas. (Pequena nota, mas significativa: este ano o PS teve menos votos do que em 1997, ano em que Guterres quis que as autárquicas fossem a rampa de lançamento para a maioria absoluta que não chegou a alcançar em 1999.)

Quando formos chamados de novo a votar creio que esta dicotomia essencial será clara: haverá que optar entre um governo do PS com o Bloco ou um governo PSD/CDS. O PCP saltará entretanto da geringonça, mas bloquistas e socialistas tenderão a constituir cada vez mais uma massa indestrinçável feita do novo esquerdismo do século XXI. Olhemos para o que passa noutros países (Jeremy Corbyn, Bernie Sanders, Pedro Sánchez, Benoît Hamon…), e facilmente perceberemos que é nessa teia que o PS de Costa já caiu, em parte por opção ideológica dos seus jovens turcos, em parte por puro oportunismo dos que se alapam ao poder. Mas é lá que estão e é por lá que ficarão nos próximos tempos.

A nova liderança do PSD deveria por isso ter bem claro que a sua responsabilidade é ser alternativa – nas ideias, na visão do mundo, na definição das prioridades, sobretudo na defesa de um Portugal liberto dos atavismos, corporativismos e interesses pequeninos (ou grandes) que há séculos determinam o nosso atraso e paralisia. É um disparate sem nome achar que a deriva esquerdista do PS recomenda um centrismo amorfo e disforme: o eleitorado português nunca foi muito de ideologias e nem sabe o que isso significa. Mais: é de uma enorme cobardia intelectual render-se à ladainha da esquerda e dos ressabiados sobre a deriva “neoliberal” de Passos Coelho, pois mesmo os que ficaram zangados com o antigo primeiro-ministro sabem que Portugal tinha de fazer sacrifícios e combater privilégios de casta, tal como mesmo os que gritaram contra a “austeridade” sabem lá no fundo que havia um caminho das pedras a percorrer.

Paulo Rangel escreveu algumas coisas acertadas sobre o diferencia o PSD do PS e só é pena que não esteja na luta pela liderança a defender essas suas ideias que, para mim, seriam pelo menos um interessante ponto de partida para um debate frutuoso. (Cito, pois parece-me relevante: “O PSD é pela igualdade solidária, o PS é pelo igualitarismo social. O PSD acredita no Estado social que liberta, autonomiza e responsabiliza o cidadão, o PS cultiva o Estado social que o cativa, condiciona e infantiliza. O PSD aposta em que a exigência na educação pode tornar os cidadãos mais iguais, o PS presume que o facilitismo os trata por igual. O PSD acredita que a família e a comunidade devem guiar a educação, o PS insiste em que o Estado deve formatá-la. O PSD quer um SNS capaz e eficiente, o PS quer um SNS gigante e complacente. O PSD visa uma segurança social abrangente e sustentável; o PS recusa pensá-la.”)

Em lugar da tonta ladainha sobre a “social-democracia”, um PSD que na Europa alinha sem estados de alma na família dos cristãos-democratas deverá compreender duas coisas: primeiro, que um partido “personalista” é, antes de tudo o mais, um partido que acredita no primado da liberdade e da criatividade individual, não na tutela asfixiante do Estado, das suas dependências e das suas mordomias; segundo, que o politicamente correcto é uma nova forma de totalitarismo que pretende impor-nos uma engenharia social e cultural que violenta a condição humana e séculos de civilização e conhecimento científico.

No filme Abril, do italiano Nanni Moretti (que esteve ligado ao Partido Comunista), a certa altura o personagem só pedia para que os socialistas (em concreto Massimo d’Alema) dissessem qualquer coisa de esquerda. Em Portugal há gente suficiente para o PSD ter um futuro se disser qualquer coisa que não seja de esquerda. Não há é futuro para uma cópia não assumida, envergonhada e porventura algo bolorenta e ressequida de um PS com roupagens mais moderadas.

Nunca ninguém ganhou em não ser carne nem peixe.