1. Ponto um. Claro que sou liberal, porque defendo a dignidade da pessoa humana, com os seus direitos inatos, precedentes do Estado, invioláveis, impostergáveis e irrenunciáveis. Sim, também são irrenunciáveis, porque, se fossem renunciáveis, seriam também forçosamente transaccionáveis. E isto seria anular a dignidade humana. Tanto me basta, por exemplo, para me opor à eutanásia.

Nesta posição, tenho em alta consideração política e jurídica a (considerada radical) Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, e a Constituição que imediatamente se lhe seguiu. Declaração que ela própria se auto-denomina uma «Déclaration solennelle [de] droits naturels, inaliénables et sacrés de l’Homme». «Direitos naturais e sagrados», note-se bem — o que, para declaração laica, não está nada mal. E que acrescenta: «En conséquence, l’Assemblée Nationale reconnaît et déclare, en présence et sous les auspices de l’Etre suprême, les droits suivants de l’Homme et du Citoyen». Isto é, «na presença e sob os auspícios do Ser Supremo», o que confirma uma laicidade crente, e não um laicismo, como hoje se pretende entre nós. Não fosse suficiente, acrescenta ainda a Declaração Francesa que «Le but de toute association politique est la conservation des droits naturels et imprescriptibles de l’Homme» — o fim de toda e qualquer associação política, portanto do Estado, é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem». E nem esqueceu uma questão especialmente melindrosa, a das liberdades religiosas, dizendo: «Nul ne doit être inquiété pour ses opinions, même religieuses, pourvu que leur manifestation ne trouble pas l’ordre public établi par la Loi» — ninguém deve ser inquietado por causa das suas opiniões, mesmo religiosas, desde que a sua manifestação não perturbe a ordem pública. Ora, há por aí uns liberais portugueses que acham que se tem de inquietar as manifestações religiosas, não porque perturbem a ordem pública, mas quando ofendam a laicidade do Estado, seja lá o que isso for. Não é exactamente a mesma coisa. O Estado não pode considerar-se perturbado quando os cidadãos exercem as suas liberdades fundamentais sem perturbarem a ordem pública.

2. Ponto dois. Claro que sou social, ou social-democrata, porque, além de simplesmente reconhecer que a pessoa humana é social, como já desde Aristóteles se reconhece consensualmente, sou cristão e portanto defensor da fraternidade humana (isto é, sou cristão pela fé, e desejo sê-lo pelas obras, ainda que desfalecente). Uma das habilidades dialécticas dos que defendem posições políticas de Estado centralista (digo centralista para não dizer autoritário ou totalitário), é convencer a opinião pública de que os liberais são por definição individualistas, mais ou menos anti-sociais e anti-solidariedade. O que não é evidentemente verdade, mas apenas uma «falsa notícia» de propaganda.

3. Ponto três. Claro que, por consequência lógica irrecusável, sou adversário político de todas as concepções de Estado que sejam (nem sequer) concorrenciais da precedência da liberdade e da responsabilidade dos cidadãos — isto é (e correspondentemente), dos seus direitos fundamentais de liberdade e dos seus deveres fundamentais de solidariedade. O Estado pode e deve vir em garante, em apoiante da dignidade da pessoa humana, e se necessário em suplente nas suas necessidades; mas não em concorrência (e pior se for desleal) com a pessoa humana, com os cidadãos. Desde Locke que o racionalismo filosófico político moderno assentou que o nascimento do Estado se justificava primacialmente em função de garantir os direitos que o homem já possuía no seu «estado de natureza», isto é dos seus direitos «naturais».

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4. Ponto quatro. Claro que, na reforma do moderno Estado social, que nasceu totalitário no marxismo soviético anti-liberal, e (re)nasceu “democrático” nas democracias pluralistas ocidentais, o critério que deve ser postulado e fielmente mantido é o de que, nas prestações sociais, o Estado não pode ser um concorrente desleal das iniciativas dos cidadãos, porque estas são, por definição, exercício das suas liberdades fundamentais, que o Estado deve por princípio garantir — e portanto não concorrenciar, e pior ainda se deslealmente.

Há somente um papel estatal que é necessariamente monopolista, no Estado social, que é o do financiamento público do Estado social, obviamente com base nos impostos, porque só o Estado tem o monopólio da fiscalidade, que é exercício exclusivo de poderes públicos soberanos. Mas pelo facto de o financiamento do Estado social ser de carácter monopolista, isso não implica que também seja monopolista a prestação efectiva das prestações sociais. Toda a gente sabe que na ciência económica e nas ciências da Administração Pública e Financeira se distingue entre provisão e prestação, entre provisão financeira e prestação em espécie. E se alguém não souber, pode ir aprender nos manuais de referência do Prof. Albano Santos, emérito do ISCSP. Os dinheiros dos impostos não são propriedade privada do Estado, de tal modo que se possa dizer que, quando o Estado paga, o Estado manda — tal como se diz «quem paga manda» nas actividades civis, neste caso propriamente.

5. Ponto cinco. Para começar, e por exemplo, talvez fosse bom que discutíssemos pública e democraticamente, na actual conjuntura política portuguesa, o livro de Julian Le Grand, acessível na tradução portuguesa: «A outra mão invisível. A oferta de serviços públicos em regime de concorrência». Penso que os partidos da geringonça precisam especialmente de ler Julian Le Grand, prestigiado professor da LSE, que foi o famoso conselheiro do primeiro m14inistro Tony Blair para as políticas públicas, e terá sido influente no reformismo blairista do socialismo de raiz marxista, infelizmente reforma gorada na Internacional Socialista, em troca do oxímoro do socialista (bem francês) Lionel Jospin, que foi popularizado na expressão: «economia de mercado sim, sociedade de mercado não».

Como se a sociedade não fosse, e não devesse continuar a ser, uma organização de iguais, portanto só podendo viver em relações baseadas no acordo, no  “contrato”, que é instituição democrática da “troca” humana — que é solidariedade, embora também possa ser injusta, porque tudo o que é humano e institucional (por exemplo o Estado) pode cair em injustiça, e logicamente necessita de regulação, o que não quer dizer sua negação. E como se o Estado não tivesse nascido para servir a liberdade da Sociedade Civil, e sob a autoridade pública da Sociedade Civil,  mas sim para dominar a Sociedade Civil ainda que sob pretexto de a alimentar.

Seja enfim sublinhado: a justiça «do» e «no» mercado (em sentido essencial de sistema de livres relações contratuais entre iguais) nunca foi contestada pelos liberais que, desde os primeiros tempos da sua nascença, defenderam o “mercado perfeito”, contra as injustiças «no» mercado não regulado. Um «mercado perfeito» é necessariamente um mercado «bem liberalmente» regulado.