Há pouco mais de um ano, Ursula von der Leyen era uma desconhecida ministra alemã, com uma carreira que tinha prometido mais do que veio a ser. Hoje, depois de uma pandemia que testou os limites da Europa e de um histórico plano para a recuperar, tornou-se uma desconhecida presidente da Comissão Europeia, o que talvez não seja uma promoção. No seu primeiro discurso sobre o estado da União perante o Parlamento, a presidente foi judiciosamente ignorada pelo putativo povo europeu, que, aliás, dificilmente seria capaz de a distinguir entre os presentes no plenário.

Não que isso seja especialmente problemático. O papel de um presidente da Comissão está longe do de um chefe de governo em autoridade e notoriedade e o máximo que um dono do maior gabinete no Berlaymont pode alcançar é um convite para as reuniões em que quem manda decide sobre o futuro. Percebe-se o relativo anonimato: seria excessivamente ambicioso pedir ao público que se recorde de Cássio quando é Iago que faz avançar a história.

Para além das estruturas, o momento também não é simpático para discursos inofensivos. Ainda que em minoria, devo dizer que não vejo na pandemia um evento que tenha reforçado a União Europeia, empurrando-a (hamiltonianamente ou de outro modo) para o abraço apertado do federalismo.

Na verdade, a mera hipótese de uma tragédia sanitária veio demonstrar os limites da União de Bruxelas. A doença despertou um medo primitivo e concreto, que permitiu aos governos a adoção de medidas extraordinariamente invasivas, submetendo a vida da comunidade à vontade do decreto, sem grande revolta e até com ganhos eleitorais.

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Nas instituições europeias, por outro lado, o medo expôs um vazio: a atuação sanitária é maioritariamente matéria da competência dos Estados-membros, que rapidamente trataram de interferir no centro da construção europeia ao eliminar a liberdade de circulação, que têm vindo a restabelecer lenta e desordenadamente. Sem competências próprias nem capacidade política para harmonizar a resposta nacional, a Comissão respondeu com voluntarismo, tentando organizar compras conjuntas de equipamento médico e promovendo uma quermesse internacional para angariar fundos e descobrir uma vacina.

Quando se percebeu que nada disso seria suficiente, o que não demorou muito, as instituições foram então devidamente guiadas pela Alemanha e pela França para uma solução mais coerente com o seu verdadeiro propósito e os Estados negociaram entre si o grande plano de recuperação da economia europeia. Esteja em causa a falência de bancos ou um vírus mortal, os limites da União são os limites do bolso comum e seria eficiente começar por aí a discussão, evitando a habitual perda de tempo com considerações constitucionais e chavões anacrónicos. No final, mais do que a aproximação a um Estado europeu, a pandemia lembrou-nos que, numa crise, a União Europeia só é útil quando funciona como plataforma de distribuição de recursos.

Por tudo isso, o maior erro do discurso esteve no que não foi dito sobre o destino dos fundos, os mecanismos que deviam ser criados para assegurar a sua execução justa e a garantia de que o dinheiro não vai chegar demasiado tarde. Em vez disso, ficou a ideia de que basta apresentar o dinheiro como slogan, porque o seu propósito é um mero detalhe. Numa Comissão de insustentável leveza política, a opacidade é um caminho que só pode trazer desagradáveis surpresas.

Enquanto líder da maior organização administrativa de apoio ao desenvolvimento alguma vez criada, von der Leyen precisava de trazer outros temas para a agenda. A transição energética, uma das prioridades alemãs, teve o destaque esperado, a coberto de considerações sobre alterações climáticas e a necessidade de uma transformação cara e radical, com novas promessas que os ecologistas se apressaram a qualificar como irrealistas, provando que a maior qualidade da presidente continua a ser uma afinada perceção das dinâmicas de poder que a sustentam.

Sobre a nova vaga de uma crise com refugiados, um problema em que nem o dinheiro pode esconder a inexistência prática dos valores europeus, ninguém ficou mais descansado. A também vaga promessa de um “pacto”, com mais “solidariedade” (i.e., dinheiro) para países expostos é, afinal, um compromisso com um remendo, atirando a verdadeira solução para o futuro mais ou menos distante. O mesmo vale para o Brexit, que ainda é um processo mais político do que económico e por isso tem sido tratado com mais emoção do que razão; em vez de permitir um acordo favorável, a confusão britânica parece destinada a contagiar a União Europeia, arrastando-a para a desordem.

No que sobrou da frente externa, a presidente demonstrou a impossibilidade de resolver o que os Estados não conseguem discutir entre si, mostrando a fragilidade da posição europeia no Mediterrâneo, na Bielorrússia e na impossível relação com o regime chinês, insistindo nas declarações titubeantes que já se conheciam e lamentavam.

Tudo somado, o primeiro discurso da presidente von der Leyen sobre o estado da União não foi memorável e é extremamente improvável que alguma parte dele sobreviva. Ainda assim, para lá das palavras, a realidade deste ano peculiar ensinou-nos tudo sobre o estado da União: o que é financeiro faz-se (quase) imediatamente, mas o político leva mais tempo.

João Diogo Barbosa, jurista (@jdiogospbarbosa no Twitter), é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00. 

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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